CRÔNICAS Silmara Franco

OLHO POR OLHO

Acomodo o laptop sobre a pia do banheiro. Acesso o tutorial que promete, passo-a-passo, um belíssimo par de olhos esfumados. É hoje!

Banksy, Street Art

Antes, achei graça no termo, recorri ao dicionário:

esfumar. [Do it. sfumare.] V. t. d. 1. Desenhar a carvão. 2. Esbater com esfuminho. 3. Sombrear com esfuminho. 4. Desfazer em fumo. 5. Enegrecer com fumo; esfumaçar. P. 6. Desfazer-se em fumo. 7. Desaparecer a pouco e pouco.

Igual receita, com ingredientes e modo de fazer, separo o que vou precisar. Corretivo, lápis preto, sombra, pincelzinho esfumador, curvex, máscara para cílios. No entanto, se com as panelas revelo alguma intimidade, o mesmo não acontece com meu próprio rosto. Invariavelmente, rendo-me ao básico, por preguiça, falta de talento e tempo (não necessariamente nessa ordem), com o costumeiro argumento “Vou só ali, mesmo”.

De imediato, detecto a necessidade de apontar o lápis, o recado que marido deixou de manhã no espelho do banheiro o arruinou (nunca reclamar disso, eis uma das regras de ouro do casamento). É aí que começam os problemas: impossível, apenas com conhecimentos humanos, limpar o apontador depois.

A parte da sombra corre razoavelmente bem. Animada, faço, com o lápis, um traço rente à pálpebra, como faz a dona do vídeo. Aprendo que há a pálpebra móvel, de cima, e a fixa, de baixo. E eu, achando que só telefonia tinha disso. Confirmo uma antiga suspeita: toda mulher entreabre a boca quando passa lápis nos olhos.

Maquiagem está para mágica, assim como os efeitos especiais estão para Hollywood. Não fossem as moças que fazem esses tutoriais gente de carne e osso, eu juraria que elas se utilizam de um ou de outro.

Esfumador entra em ação. Receio ter sido literal à definição do termo, marido perguntará onde foi que arrumei carvão. Tiro tudo.

Maquiar é como manobrar caminhão: ver os outros fazerem parece tão fácil.

Quem sempre anda de cara lavada, quando se maquia, corre o risco de sair de casa com a sensação de usar um rosto que não é seu. E esse, que parece não lhe pertencer, pode ter olhos de ver coisas que você não enxergaria. Perigo?

Refaço o procedimento. Bom de vídeo é poder pausar, rever e continuar, na hora que se quer – diferente da vida real. As pálpebras (fixa e móvel, conforme aprendido) se ressentem com a esfregação e não colaboram. Não sou vidente, mas sou acometida de uma premonição: o pior está por vir, quando chegar em casa com sono e tiver de limpar tudo antes de dormir. Parodiando o bandido arrependido, direi: o rímel não compensa.

Comparo o resultado final: nem sombra (ops) do que está na tela. E meu espelho não vem com Photoshop – ainda bem. É assim que vou hoje.

Silmara Franco
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Silmara Franco

Silmara Franco

Paulistana da Móoca, onde viveu por mais de três décadas. É publicitária por formação e escritora por salvação. Mora em Campinas (SP) com a família e a gataiada. Autora de "Navegando em mares conhecidos – como usar a internet a seu favor" e livro finalista do Prêmio Jabuti 2017, "Você Precisa de Quê?". Dona do blog Fio da Meada.