CONTOS LITERATURA

“O HOMEM-MULHER”, SÉRGIO SANT’ANNA

O nome dele era Adamastor Magalhães, mas ele preferia ser chamado de Fred Wilson, que era o nome que usava no grupo amador de teatro em que era ator, em Belém do Pará, cidade onde nascera e vivia. Para simplificar, as pessoas passaram a chamá‑lo de Fred. Pode‑se dizer que tudo começou quando ele fez o papel de Claire, em As criadas, de Jean Genet, em que, naturalmente, usava uma roupa feminina. E foi com o figurino de Claire que, num Carnaval, saiu num bloco de sujos. Mas é de supor que, morando numa família com mais duas irmãs, tenha experimentado vestidos escondido.

E também é provável que, estando na adolescência, tenha sentido um verdadeiro frisson com o ventinho nas pernas e uma calcinha envolvendo seu pau, quando experimentou uma roupa da irmã pela primeira vez. Ele sentiu esse corpo feminino em si ou contra o seu. Teve de ajudar‑se com a mão para gozar, mas a marca era indelével: homem e mulher num corpo só, que sente prazer.

Talvez, se Adamastor tivesse o pai vivo, levasse uma tremenda bronca ou até uma surra ao ser flagrado usando um vestido. Mas não tinha mais esse pai e talvez o caso de Fred não se deva explicar pela psicologia: é a sua história, um modo de ser.

Depois, havia esse lance mais livre dos blocos de Carnaval, e isso era mais do que comum em todas as cidades brasileiras, homens vestidos de mulher, caricaturalmente ou não, em grupos, blocos ou até sozinhos, e não havia quem os chamasse de veados por causa disso. Divertiam‑se para valer, Adamastor e seus amigos.

Mas uma experiência verdadeiramente significativa se deu numa segunda‑feira de Carnaval em que Adamastor, de vestido, agora da irmã, pois suara no figurino, e uma garota fantasiada de odalisca, se enrabicharam, entrando num bloco de mãos dadas, relando aqui e ali e trocando beijos furtivos, procurando não ser vistos pelos pais da garota, de dezesseis anos (ele tinha vinte e cinco), que eram turistas de Goiânia, gente severa, tanto é que às dez horas levaram a mocinha para casa.

Na terça‑feira gorda, última noite dela na cidade, Adamastor voltou a sair de Claire, pois a roupa fora lavada e passada, comprou de um amigo um quarto de um frasco de lança‑perfume e ele e a menina resolveram escapulir de toda a vigilância. Às oito horas foram seguindo um bloco, comportadinhos, até que passaram por uma rua mal iluminada, transversal à avenida em que o bloco desfilava, e que ia dar no cemitério menor da cidade.

Aí, começaram a correr para conseguir chegar a um lugar ermo e poder cheirar o éter em paz. Mas, ao passar em frente ao cemitério, viram que havia um portão entreaberto e Adamastor puxou pela mão a garota, Dalva, e logo já estavam lá dentro, junto ao muro que cercava os túmulos, a capela e o resto todo.

Medo só um pouquinho, de encontrar alguém que tivera a mesma ideia ou gente de algum velório. Mas não encontraram ninguém, nem o vigia, que devia estar misturado aos foliões, mesmo que fosse só para assistir. Porém, mais do que depressa se esconderam à entrada de um túmulo grande, desses de família rica. Ofegavam e a garota, safadinha, pegou a mão direita dele e a encostou no seio esquerdo dela.

“Olha como meu coração está batendo.”

Adamastor aproveitou a deixa e abriu dois botões da blusa da fantasia dela, afastou o sutiã e lançou ali um jato de éter. Ela se contraiu toda e disse “Que geladinho”, mas ele já estava aspirando entre os seios de Dalva e depois chupou um dos mamilos dela. Com o éter, Adamastor sentiu um zunido nos ouvidos e o mundo era aquela alucinação cheia de túmulos, estátuas e cruzes, tudo muito nítido e com sombras, porque era noite de lua cheia, e aquela garota vivinha da silva.

“Agora é sua vez”, ele disse e levantou sua saia de Claire. Com a mão esquerda, encharcou a calcinha de lança‑perfume.

Puxando a cabeça da menina para baixo, fez com que ela se ajoelhasse aos seus pés e disse:

“Cheira minha calcinha o mais forte que conseguir.”

Dalva ficou doida demais, o mundo rodopiava e ela vendo a lua, os túmulos e os vaga‑lumes e ouvindo o barulho dos grilos, ao mesmo tempo que tinha certo medo de estar perto dos mortos. Mas nem teve tempo direito de sentir esse medo, pois Adamastor baixou a calcinha que estava usando, enfiou o pau muito duro na boca da garota e falou “Chupa maciozinho”, e a menina fez direitinho, por pura intuição, porque era a primeira vez e, ainda doidona, excitadíssima com um pau aparecendo sob um vestido e uma calcinha, engoliu a porra e gostou, porque vinha dele e era assim um pecado imenso no cemitério.

Não restava muito do lança e Adamastor olhou ao redor e puxou Dalva pelo braço até um túmulo branquinho e cheio de ores, com uma estátua que parecia vestida com roupa de santa, mártir, muito bonita. Dalva acomodou‑se na estátua, que era inclinada, e ele levantou a saia dela, que já estava sem calcinha, e depois tirou a sua e foi lambendo a xoxota da menina, depois cheirou éter na barriga de Dalva, para não arder na boceta, e Dalva continuava doidaça, apesar de o efeito do lança‑perfume já ter quase passado, mas ser lambida na boceta era melhor ainda, e ele, Adamastor, o danadinho, quando chegou ao clitóris de Dalva, só roçava com a ponta da língua, como as putas lhe haviam ensinado.

Adamastor jogou lança de novo nas duas calcinhas fora dos corpos, mantendo a dele no rosto de Dalva, e tinha o controle de tudo e, tendo cheirado mais na calcinha dela, levantou o vestido da garota e entrou com tudo nela, que gritou de dor, abafada pela calcinha que ele pressionava contra seu rosto.

Enquanto isso, lá embaixo, saía o sangue de virgem. Ela não chegou a gozar, por causa da dor, mas estava preenchida e exaltada. E ele, apesar de já ter gozado uma vez, gozou outra, e depois caiu para o lado, juntinho de Dalva sobre a santa, as respirações voltando ao normal. Em silêncio, eles ouviam o barulho dos grilos e do piar de corujas e viam os vaga‑lumes e até as estrelas, e ouviam a banda tocando músicas de Carnaval, lá para os lados da praça: Quanto riso, oh, quanta alegria, mais de mil palhaços no salão, Arlequim está chorando pelo amor da Colombina, no meio da multidão…

Adamastor tentou esguichar mais um pouco de éter na barriga de Dalva, para depois cheirar ali, quando viu que o frasco de lança‑perfume estava completamente vazio.

“É melhor a gente ir”, disse Dalva, recompondo‑se. “Meus pais devem estar me procurando; eu vou na frente, você vai depois.”

“Espera aí, vem cá só um minutinho.”

Adamastor a puxou pelo braço, também já se recompondo com o vestido de Claire. Iam limpando as roupas como podiam e chegaram, conduzidos por ele, até um canto do cemitério, onde havia um pequeno trecho de terra solta e duas pás, com toda certeza para cavar uma nova sepultura.

“Essa aí está aguardando um novo morador.” Ele fez Dalva rir.

Como as calcinhas estavam com sangue, eles não as vestiram e Adamastor, com uma das pás, abriu facilmente um buraco, jogou a sua lá dentro e falou para Dalva imitá‑lo, o que ela fez sem hesitação.

Adamastor então jogou o frasco dourado de lança‑perfume, que brilhou à luz da lua. Ele abençoou com a mão direita aquele conjunto, pegou a pá e jogou terra por cima, depois fez o sinal da cruz.

Dalva, rindo, segurou o braço dele e disse:

“Eu te amo, Fred.”

“Eu também te amo, Dalva.”

Adamastor beijou fundo e longamente a boca de Dalva e foi correspondido com ardor.

“Mas eu te amo é para sempre”, disse Dalva.

“Eu também, queridinha.”

Primeiro saiu ela, depois saiu ele. E nunca mais se viram.


Sérgio Sant’Anna foi autor de romances, como “Confissões de Ralfo” e “Um crime delicado”, e livros de contos, como “O homem-mulher” – esse o conto que deu origem ao título e foi divido em dois: o último conto do livro, “O homem-mulher II”, finaliza essa história com chave de ouro.

Esse foi seu último conto enviado para a Revista ÉPOCA, antes dos primeiros sintomas do Coronavírus.

Morreu hoje, 10 de Maio de 2020, aos 78 anos, vítima da Covid 19.


 

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