CONTOS

CONTOS DE TERROR

A artista plástica e escritora Deborah Brum tem um estilo peculiar de escrita: seus contos são repletos de utopias imaginativas, um tanto de irrealidade, além de pitadas de terror.

A autora não tem medo de arriscar: nesse universo fantástico que sua mente cria, recria e devaneia, ela dá voz a personagens humanos, animais, vegetais, a todo tipo de ser, descrevendo em metáforas as muitas formas de vida que enredam a existência real.

Os cenários que compõem seus textos ultrapassam a realidade: dentro deles, um mundo extravagante, muitas vezes esquisito, assombram a mente de quem a lê. Em muitos finais – quase nunca felizes -, você não consegue evitar a sensação de sair de um filme estarrecedor de suspense.

Confira um desses textos  e divirta-se com uma leitura singular.


MULHER DE MEIA TONELADA, Deborah Brum

Foi uma cena grotesca de ver: a mulher pendurada no teto pelas mãos, em um gancho; ele, o marido, a descarnando com um grande facão para lhe retirar as camadas de gordura acumuladas em trinta anos de casamento.

Casou ainda virgem de alguma coisa que sua mãe não havia explicado a ela quando ainda era uma senhorita, mas compreendeu por instinto que só deixaria de ser virgem quando se tornasse de fato mulher. Seu nome: Pilar. Antes de se casar, chamavam-na Lalinha, pois ainda tinha uma memória de esperança no canto dos lábios. Verdade que não era uma beleza de dar inveja a mulher feia, mas de agradar a sogra; uma beleza de foto sépia.

Buscava sempre diversão nos supermercados do bairro em que foi morar. Uma região onde todas as casas possuíam azulejos decorados na fachada. Muitos bons-dias eram dados e recebidos sem serem de fato verdadeiros. Mas ela sempre sorria.

A cada compra, olhava meticulosamente cada produto, verificando a quantidade de sódio existente para não interferir na pressão arterial já alterada do marido. Todo dia um novo cardápio o aguardava quando chegava faminto daquilo que deixara para trás. Pendurava as chaves antes mesmo de lhe dar um beijo. A boca de Pilar sempre aguardava, mesmo que fosse uma bitoca, que jamais acontecia.

Sentavam-se à mesa de pés descalços; dizia ele que isso o ajudava na digestão lenta de seu organismo. Pilar saboreava a comida no fundo da língua, num desejo feroz de engolir o que quer que fosse rapidamente. Sempre era a primeira a falar e a se calar. Falava e escutava aquilo que ele queria, mesmo que isso lhe provocasse uma sensação de ser uma televisão esquecida ligada, de madrugada, quando todos ainda dormem. Sofrer? Não sofria. Ainda lhe restava um tanto de esperança nos cantos dos lábios. Vestia manequim 38 desde a adolescência, quando sua mãe, delicadamente, mandou-a fechar a boca para arranjar um bom casamento. Não sabia se havia casado por causa do tamanho de sua cintura ou se outra coisa chamou a atenção daquele homem que se tornou seu marido.

Acontecia, quase que numa rotina, de sentir seu corpo levitar pelo peso da angústia de não saber o que de fato acontecia. Recorria, nessas horas, aos seus sonhos bons para se sentir mais aterrada.

conto_dbHavia dias em que se explicava quase como um dicionário explica uma palavra objetiva como cadeira. De modo geral, achava-se mais parecida com um eco; algo que grita num abismo e é ouvido da mesma maneira num vazio: um espelho daquilo que é falado.

De fato, se explicava , mas jamais se fazia entender, mesmo porque, sendo eco, não poderia ser explicada e sim sentida como pulsação.

Tinha escolhas a fazer, e tomá-las era transformar tudo o que conhecia e em que não sabia se acreditava em algo que definitivamente lhe era desconhecido. Nunca soube ao certo se aquilo que escolhia faria algum sentido no seu futuro.

Procurava um destino que estivesse no outro, no caso, seu marido. Porém, o destino daquele homem não era nem mesmo dele. Nunca foi adepto a extravagâncias de celebrar a vida. O máximo que conseguira até então foi plantar uma muda de manjericão num vaso da horta de casa. Algo muito sem graça para pessoas que possuem a coragem de escolher seu próprio destino.

Era admirável a persistência que ela tinha; quase uma teimosia compulsiva de criança quando está aprendendo a engatinhar. Fazia tudo que era possível para agradá-lo, sem nada ter recebido além do “vasinho” de manjericão. E ele, sempre que saboreava um prato em que a erva era utilizada, não cansava de dizer, gabando-se, que a muda só havia crescido porque ele a havia plantado. Estabeleceram um pacto: ser um casal normal … casaram, tiveram dois filhos, levaram os filhos para conhecer o mar, sentavam à mesa, ela mulher e ele homem.

Jamais então alguém poderia suspeitar que aquela mulher,Pilar, que agora pesava quase trezentos quilos, poderia pedir um tipo de favor deste ao marido: -Não aguento mais os quilos que ganhei, Acir!

Deu-lhe um facão e pediu-lhe que arrancasse toda a gordura que havia adquirido ao longo da sua vida com ele.

– Você me deve isso!

Como era, na verdade, um homem medroso, hesitou. Porém, ao ver que ela havia perdido aquela esperança nos cantos dos lábios, descobriu que amava Pilar. Por amor, afiou a faca, pendurou a esposa no teto e fez aquilo que ela havia pedido.

No final, pouco sobrou de Lalinha.


Deborah Brum é formada em Artes Plásticas e atualmente dedica-se à Literatura e suas vertentes. É mediadora do Clube do Livro Granja Viana, em parceria com a Companhia das Letras e a Livraria Nobel da Granja VianaEscreve Crônicas e Contos. Mora na Granja Viana, é casada, tem dois filhos. Leia mais sobre a autora aqui.

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