CRÔNICAS Silmara Franco

O DIA EM QUE VIREI UMA CHATA

Ilustração: Minh Nguyen

Ilustração: Minh Nguyen

Não sei se foi quando passei a desejar praias com ar-condicionado, exigir risotos com arroz arbóreo ou desaprovar espressos imperfeitos.

Ou se foi quando comecei a achar tudo caro e a estranhar travesseiros que não os meus. Quando pedi para abaixarem o som da TV. Quando dei por mim que não suporto Carnaval e praticamente tudo relacionado a ele.

Talvez tenha sido logo depois de ter comprado um sedan azul-marinho (azul-marinho!), mais ou menos na mesma época em que não compreendi como alguém poderia ser feliz sem transmissão automática.

O dia em que virei uma chata é um mistério particular, imerso num labiríntico apagão afetivo. Busco o autoconhecimento, embora insista numa espécie de amnésia induzida. As pistas, porém, estão por toda parte. (Mas eu costumo achá-las todas muito chatas.)

Pode ser que tenha coincidido com o dia em que não deixei meus filhos brincarem com a minha bolsa – muito menos com o seu conteúdo –, como eu sempre permitia com meus sobrinhos, antes de ser mãe.

Ou quando passei a implicar quando eles saíam descalços na rua, ou na garoa, sem agasalho.

Ou então, foi no dia em que torci o nariz quando o pai quis levá-los ao estádio de futebol em dia de decisão. Todo medo é chato.

O mais provável, porém, é que eu tenha virado uma chata por ocasião da primeira centena de pecinhas de Lego espalhada pela sala. Pode ser que sim, pode ser que não. De uma coisa tenho certeza: foi aí que passei a ver sentido no colégio interno.

(Todo zelo guarda em si uma fagulha de chatura. E toda mãe está condenada a, cedo ou tarde, virar uma chata.)

Quem nunca se viu, de um dia para outro, metamorfoseada em chata? Como aquela mulher que acorda, vira de lado, encara as cortinas e implica com a costura torta na bainha. Ou com o pó por aspirar no cantinho do rodapé. E, da cama, ainda a sós com seus pensamentos sobre cortinas e rodapés, bufa e suspira pela agenda que o dia anuncia: trânsito, reunião, médico, varejão. Nessa hora, nem o Anjo da Guarda a poupa: “És chata!”.

Quanto a mim, sigo desconhecendo o momento inaugural de minha própria chatice. Tenho cá, no entanto, que é do tempo em que perdi a confiança nos vendedores (todos), a crença nas liquidações de até 70% de desconto, a fé nas empregadas domésticas. Todo descrente é, potencialmente, um chato.

É do tempo em que deixei de rir com nove entre dez programas humorísticos da TV e passei a nutrir sentimentos terríveis por pessoas que usam viva-voz. A patrulhar, silenciosa ou publicamente, em textos ou discursos alheios, conjugações verbais insolentes, plurais desrespeitados e aspas esquecidas. De quando amaldiçoei cada ênclise metida, cada ausência de acento e cada vírgula boba. Tal Narciso, quase todo chato acha feio o que não é espelho.

Chata virei, enfim. E não tenho previsão para desvirar.

A sorte do mundo é que os chatos não são unidos.

Silmara Franco
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Silmara Franco

Silmara Franco

Paulistana da Móoca, onde viveu por mais de três décadas. É publicitária por formação e escritora por salvação. Mora em Campinas (SP) com a família e a gataiada. Autora de "Navegando em mares conhecidos – como usar a internet a seu favor" e livro finalista do Prêmio Jabuti 2017, "Você Precisa de Quê?". Dona do blog Fio da Meada.