HIPERBREVES

DOS QUE NÃO MORREM NO FINAL

Tentaram cultivar lonjuras, para a geografia e para a decência. O RG de cada um rezava paragem distinta. O título eleitoral era santo demarcador de zona e cada qual a uma pertencia. “Limites”, o pai dela bradava, em noite de bebedeira. “Em nome de Deus…”, entoava a mãe dele, em dia de culto raso de fé. Arrepiou-se o improvável, que passaram a se comprazer um da existência do outro ao sofrerem o imprevisto de roçar o olhar no olhar, mesmo em campo de batalha, acabando avessos às reivindicações alheias. Eliminaram lonjuras, da geografia e da decência, por se atirarem, com frequência, um nos braços do outro e se descobrirem partidários das pernas enroscadas. Tentaram barbarizar com o afeto deles, dando nomes de família aos bois que pisoteavam o sentimento sem o qual eles já não sabiam viver. Daí que não se prenderam às dúvidas: partiram. Sem RG, título eleitoral ou universo dividido. E para não voltar – que os limites nunca lhes interessaram e, em nome de Deus, jamais cometeriam solidão.

| Carla Dias |

Les Amants © René Magritte
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Carla Dias

Autora de "Estopim", "As Asas da Borboleta", "Jardim de Agnes", "Os Estranhos" e "Azul", além de participação com contos e crônicas em mais quatro coletâneas - entre elas, "Acaba Não, Mundo", do site "Crônica do Dia", onde ainda escreve às quartas-feiras. Trabalha como Produtora de Eventos junto à baterista Vera Figueiredo [IBVF Produções]. Vive em São Paulo.