“Demian”, de Hermann Hesse, é um livro difícil de resenhar. Não por ser uma das obras primas de um Nobel da Literatura, mas por ter me causado impactos totalmente diferentes em três momentos distintos da vida.
Eis três capas que me marcaram, e a mais recente é a que eu mais gosto, da Editora Record: uma flor flamejante que desabrocha. Com tradução e posfácio de Ivo Barroso, esta nova edição comemora os cinquenta anos do lançamento de “Demian” no Brasil. A capa com o rosto mitológico é de uma versão que eu li por volta de meus trinta anos. E a capa mais sem graça, ironia das ironias, foi de quando eu achei o livro realmente fantástico. Tinha eu, então, quinze anos.
Voltando ao ponto e à minha dificuldade de falar sobre o que senti, lendo o livro novamente. É diferente de várias outras obras que eu li três vezes e tive as mesmas sensações. Da primeira vez que li Demian, ainda garoto, fiquei fascinado e profundamente marcado, nunca me senti tão forte. Me fez bem. Da segunda vez, percebi a forte influência de Nietzsche e Jung na obra, foi uma leitura mais intelectual. Desta última vez, fiquei algo irritado com umas coisas que achei meio drama queen, muita elaboração psíquica por conta de lances que poderiam ter sido vividas de modo mais simples.
Mas me disseram que “Demian” é um livro que impacta poderosamente quando a pessoa é muito jovem, por falar de questões tão peculiares à juventude e, bem, o próprio protagonista é um adolescente. Faz sentido que eu tenha gostado tanto quando tinha 15 anos, e me irritado aos 44. Da primeira vez, eu me senti o próprio Max Demian. Desta última vez, eu queria pegar Emil Sinclair [o protagonista] pela gola da camisa, chacoalhá-lo e dizer “bicha, deixe de ser louca”. De uma forma ou de outra, sendo apaixonante ou irritante, “Demian” é um livro que nunca me deixou indiferente.
O livro é carregado de simbolismos alquímicos, e foi sem surpresa que descobri que ele foi escrito depois de Herman Hesse ter tido contato com um discípulo de Carl Jung.
Conta a história de Emil Sinclair, cuja vida acompanhamos da pré-adolescência até se tornar adulto. Oscilando entre a luz e as trevas, entre a pureza e a vida mundana, Sinclair tem como “guia espiritual” a figura também adolescente [e poderosa] de Max Demian. Ainda muito jovem, Sinclair aprende uma nova interpretação para a história de Caim e Abel, uma interpretação em que Caim não é um vilão, mas um homem destemido e singular. Enquanto todo o resto era rebanho, Caim era especial e possuía “a marca” que o fazia temido pelo rebanho.
Há, no livro, um elemento místico constante, demonstrado no fato de que as pessoas que possuem “a marca de Caim” se reconhecem entre si e são capazes de se comunicar espiritualmente, por meio de uma telepatia sutil. A influência da filosofia de Nietzsche é claríssima em todo o livro, e aparece na crítica ao “comportamento de rebanho”. Sinclair eventualmente deseja pertencer ao rebanho, mas é incapaz disso. Angustia-se por se perceber diferente, e pouco a pouco vem a aceitar sua própria natureza e a marca de Caim.
Demian, não muito mais velho, atua como o guia espiritual de Sinclair. Se Sinclair é pura dúvida, Demian é convicção plena. Se Sinclair é medo, Demian é coragem perversa. Eu diria que Demian surge como um aviso: “eu sou você amanhã”.
O recalque sexual é algo que salta aos olhos no livro, e esta foi uma parte que me irritou. Ainda que Sinclair oscile entre a pureza e a vida mundana, ele nunca abandona a pureza completamente. Quando ele mergulha no mundano, tudo se limita a arruaça e bebedeira. O recalque sexual de quando Hesse escreveu o livro era tão poderoso, que nem na ficção ele ousa romper com isso. Outros elementos de recalque aparecem no aparente apaixonamento de Sinclair por Demian e, embora muitos insistam que se tratam de lances psicológicos, sem conotação sexual, me parece ingênuo não identificar o desejo sexual. Aponto três partes:
“Demian mudou de lugar na classe de religião e veio sentar-se à minha frente (ainda me recordo o quanto me era agradável aspirar, em meio à miserável atmosfera de indigência da classe repleta, o fresco perfume de sabonete que se lhe exalava da nuca!)”
Após cafungar a nuca cheirosa de Demian e passar a adolescência inteira sem transar uma única vez, no máximo alimentando uma paixão platônica por uma moça chamada Beatriz (a quem Sinclair nunca disse nem mesmo um “oi“), os dois crescem. Temos, então, a seguinte descrição que Sinclair faz do Demian jovem adulto:
“A figura de Demian era magnífica. O peito dilatado, a cabeça viril e os braços, com os músculos em tensão, fortes e ágeis. Os movimentos emanavam fáceis da cintura, dos ombros e das articulações dos braços, como águas nascentes”.
Amiga, a senhora estava no cio e não sabia! Pra completar, rola até selinho entre os dois.
Já li alguns dizendo “não, nada disso, Sinclair se apaixona pela mãe de Demian”. Tá certo. O tempo inteiro ele descreve Eva, a mãe de Demian, como atraente por ter traços masculinos.
Isso não tem muita importância. “Demian” não é uma história gay, apesar de ter muitos elementos homoeróticos BEM sutis. O que me espanta é que se tente, ainda hoje e a partir de muita retórica, “apagar” o fato de que Sinclair era apaixonado por Demian. O recalque sexual geral é tanto, mas tão intenso, e fico surpreso que o personagem Demian, com toda a sua repulsa à moral cristã, não tenha iniciado Sinclair num bacanal.
Esta sexualidade contida não combina com a personalidade de Max Demian, nem com a de sua mãe, e fica uma coisa esquisita no livro. Note-se que, no começo do livro, há até uma insinuação de que Demian e a mãe mantinham uma relação incestuosa. Eu penso: “opa, Sinclair vai conhecer um mundo novo”. Mas não. É apenas filosofia, chazinhos e frases misteriosas. Foi isso o que me irritou, da última vez que li. Me dá a impressão de que o autor pretendia desvelar um mundo fora da moral cristã e se segurou, ficou com medo.
Mas se faltou a Hesse a coragem de mergulhar mais na amoralidade sexual [que era algo que, aparentemente, ele pretendia no livro], que se exalte o fato de nunca ter lhe faltado coragem para peitar a ideologia nazista. Herman Hesse foi um dos grandes críticos do revanchismo alemão em sua época, e faz isso belamente em outro de seus livros: “O Lobo da Estepe”.
À parte minha irritação de meia-idade, considero “Demian” um livro maravilhoso e com tanto simbolismo que é possível lê-lo várias vezes e sempre descobrir algo novo. A frase “quem quiser nascer precisa destruir um mundo” virou um clichê e é citada do mesmo modo que muita gente cita Clarice Lispector sem nunca tê-la lido.
Mas o contexto da frase é muito mais profundo – e amedrontador – do que tentam fazer parecer, fazendo soá-la apenas uma frase de autoajuda bonitinha. Lembrem: a marca de Caim é a marca do assassino. “Destruir o mundo” envolve sair do rebanho, nascer como indivíduo, e isso envolve abraçar um aspecto bestial que nos torna assustadores.
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