Imaginava-se livre, digno de descanso, assim que a morte o recolhesse. Nunca pensou que acabaria assim ou aqui. Quando vivo, torcia para que alguém lhe dissesse gentilezas, mas não. Era um ser de alma besuntada em asperezas, incapaz de reconhecê-las, mesmo que fossem gritadas na sua fuça. Era do bem, só não sabia reconhecer o bem quando a benfeitoria era para o outro. Engoliu vazios, coração no modo estraçalhado. Ainda assim, ganhou o título de homem mais capaz – e necessariamente frio – do escritório. Não ligou para isso, que jamais temeu ou teve apego pelo rótulo. Agora, aqui está: morto que só, desencarnado, com certeza, incumbido de fazer vigília em festas e almoços de família, de ruminar felicidade alheia. Não havia percebido como as pessoas fazem barulhos esquisitos ao gargalharem. E na condição de fantasma ou espírito necessitado de reajustes, morre de inveja da sinfonia criada pelas crianças correndo pela casa, o que, por um momento, faz com que ele se sinta vivo, como nunca.
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