Desacorçoada, anda para lá e para cá, falando consigo mesma, passando autossermão. Quem a assiste, espectador despudorado, garante que as cenas do próximo capítulo serão de deixar esse personagem principal em maus lençóis. Está desalentada por terem lhe revogado o direito de ser. De acordo com os autos, o que ou quem ela é, enfim, essa misturada toda com a qual Deus e a genética colaboraram na construção, criaram um bicho impossível de se decifrar, digno de extinção. Nesse dia seguinte ao vencimento do pagamento que lhe garantiria o direito de continuar sendo, ela já não pode ser mais. Produto impossível de se pagar com multa, juros e certa crueldade alheia é a personalidade. Perdeu a data de vencimento, fazer? Ela respira fundo, e antes de se juntar ao rebanho, sorri. Um último sorriso, antes que o seu ser seja engolido pelos padrões, pelo reconhecível, pelo facilmente assimilado. Antes que ela deixe de ser e passe a existir feito enfeite, identidade isenta. Arfando em segredo.
Le Faux Miroir © René Margritte
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