Surgirás – miúda, ainda – no ventre da tua mãe quando ela estiver ouvindo a parte mais bonita de Wild is the wind (vídeo abaixo). Ela nem desconfiará. Muito menos teu pai.
Crescerás mais rápido dentro dela do que em toda a tua vida. O passo do tempo, ali, é outro. Quando estiveres do lado de fora perceberás a diferença. Ao vires a luz do dia e da noite pela primeira vez, compreenderás tudo. E não sentirás mais medo algum.
De pequena, terás longas conversas com cachorros, gatos e passarinhos. Pois tudo que tem boca pode conversar.
Tua casa parecerá maior do que é realmente, embora teu mundo soe menor do que de fato é. São os contrapontos da vida se apresentando a ti. Acostuma-te.
Chegará a hora em que calçarás um salto alto, e gostarás. Providenciarás outros. Libertarás tuas pernas do cativeiro de pano que são as calças. E, não agora, mas na hora certa, cortarás teus longos cabelos sem hesitação.
Não esquecerás o primeiro amor. Nem o segundo. Mas será com o terceiro que viverás, mais precisamente, por dezoito mil, novecentos e vinte e um dias. Terás com ele um filho. Em seguida, uma filha. Depois, outro filho. E a sequência lógica da tua biologia, então, se concluirá. Mal terá nascido o 18.922º dia, teu amor partirá. Nem tentes saber em que dia isso cairá. Tu não sabes qual calendário Deus usa.
Perceberás, cedo ainda, quanto do teu precioso tempo dedicas às coisas sem importância. Considera esse o teu maior presente.
Farás cinema, ainda que não acredites no teu talento.
Não te alimentarás com nada que tenha rosto.
Não visitarás nenhum país, além do teu. Uma pena. Não és árvore, para nascer, viver e morrer no mesmo lugar. Também não aprenderás a tocar nenhum instrumento. Vais sentir falta disso, quando quiseres traduzir tua tristeza.
Errarás o caminho seis vezes. Em três, encontrarás o caminho de volta. Em duas, não. Em uma, não fará diferença.
Quando reconheceres a primavera pelo perfume, o verão pela pele, o outono pela cor das árvores, e o inverno pelo sabor do chocolate, tudo em ti estará pronto. Serás capaz, finalmente, de ouvir a ti mesma.
Um dia, acordarás noutro lugar, diferente daquele em que dormistes na noite anterior. Sentirás falta do livro que deixastes na cabeceira da tua cama, e também da própria cama. Ao olhares ao redor, ficarás assombrada com o nada que haverá. Mas bastará que tu feches os olhos, e tudo o que coube em tua mente ao longo da vida se manifestará.
Estarás, enfim, em casa.
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