CRÔNICAS Silmara Franco

TRATADO GERAL E INCOMPLETO DA PACIÊNCIA

Ilustração: Lori Portka

A paciência de esperar crescer a unha que quebrou no cantinho, fazendo doer a carne, é a mesma de aguardar o girassol dar flor, para se tirar uma foto bem bonita e colocá-la como papel de parede na tela no computador.

A paciência de esperar seu pai de oitenta e um anos colocar o cinto de segurança no carro é a mesma de aguardar sua filha de seis pentear e arrumar os cabelos para ir à escola. (Ele esperou setenta e cinco anos pela neta. Nunca reclamou.)

Paciência não é garrote, para ser laçada à força, contra a vontade. Paciência não se aprisiona, ela tem que querer vir com a gente. Feito gato. E há que ser conquistada, diária e romanticamente, num exercício eterno. Ficar no corpo feito tatuagem, habitar a hipoderme, invadir a entranha mais entranhada, para que de lá irradie sua essência aos pontos cardeais do corpo, do dedo mindinho do pé ao fio de cabelo que acaba de nascer, dos ouvidos à ponta da língua. Só assim.

A paciência de suportar a delonga do freguês à frente ao fazer o pedido no fast-food, enquanto analisa o cardápio inteiro e faz perguntas esparsas ao atendente, é a mesma de esperar a velhinha de perfume adocicado e levemente confusa tirar um extrato no caixa eletrônico.

A paciência de permitir às formigas em fila indiana atravessarem a pia antes de você abrir a torneira é a mesma de esperar seu filho escrever no caderno a palavra “elevador”, caprichando no ‘a’ e perguntando se a barriga do ‘d’ é para a direita ou para a esquerda.

Ilustração: Lori Portka

Paciência não vive de aluguel. Só mora em casa própria.

A paciência de chegar ao fim do livro pela ordem natural das páginas é a mesma de aportar ao cume da montanha no fim do mundo, sem valer-se de atalhos. A mesma de aquietar-se no inverno do sinal vermelho para esperar a primavera do sinal verde. Paciência é a contemplação de toda obra em progresso.

A paciência é virtude generosa. Aceita, compreende e perdoa até mesmo a mais mentirosa das urgências.

É bom possuir alguns tipos de paciência ao longo de uma vida. Impaciência causa a má digestão do dia. Eu reúno poucas, em meu breviário de anos. A despaciência é meu arquivo corrompido, minha ‘page not found’, meu defeito de nascença que impede, inclusive, que eu complete este ensaio. Aprendo a lição todo santo dia, mas volto para casa cheia de correções para o dia seguinte. Assim não passo de ano. E para quem é reprovado em paciência, os anos novos não chegam, nem bastam. Fim.

Silmara Franco
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Silmara Franco

Silmara Franco

Paulistana da Móoca, onde viveu por mais de três décadas. É publicitária por formação e escritora por salvação. Mora em Campinas (SP) com a família e a gataiada. Autora de "Navegando em mares conhecidos – como usar a internet a seu favor" e livro finalista do Prêmio Jabuti 2017, "Você Precisa de Quê?". Dona do blog Fio da Meada.