LITERATURA RESENHAS

NOSSAS NOITES

O livro Nossas Noites conta a história de duas pessoas solitárias que estão envelhecendo e encontram um jeito de aplacar sua solidão ante as noites longas. Um primor de livro. Abaixo, o texto do Psicólogo e Escritor Contardo Calligaris, escrito para a Folha, e replicado aqui porque lá só assinantes tem acesso à leitura. 

O filme, produzido pela Netflix, já está disponível no Brasil. Com uma adaptação bem delicada e intimista, Jane Fonda e Robert Redford emplacam como protagonistas, dando uma visão bem real do que pode ser a velhice solitária e, na proposta do livro, inventando jeitos de driblar essa passagem da existência – inevitável para quem envelhece -, com prazer e dignidade.


Imagine que você tenha 60-70 anos – ou mais. Você está sozinho ou sozinha. As “crianças”, se você teve filhos, já estão longe, com suas vidas feitas. Seu companheiro ou companheira (da vida toda ou dos últimos tempos) foi-se. Você sobrou, viúvo, separado, tanto faz.

Você está bem de saúde – apenas envelhecendo. A aposentadoria é suficiente, paga o supermercado a cada semana e, de vez em quando, um restaurante, um cinema, um teatro. E os livros; você lê, sempre leu.

Há dias em que você não fala com ninguém. Às vezes, são semanas.

Você mora desde sempre, como se diz, na casa onde viveu seu tempo de casa e criou seus filhos – talvez no mesmo bairro onde você foi, por exemplo, professor de colégio. Poderia ser uma casa vitoriana, num subúrbio norte-americano, ou um sobrado, num bairro de classe média de uma cidade brasileira – ou um apartamento, num prédio da mesma cidade.

Um dia, alguém toca a campainha da sua porta ou bate de leve. É uma vizinha, que você conhece de vista e de vocês se cumprimentarem de longe. Tem a mesma idade que você, mais ou menos; ela viveu lá a vida inteira, com o marido dela, e agora é viúva ou separada, que nem você.

“Quero fazer uma sugestão para você”, ela diz. “O que você acharia da ideia de ir à minha casa de vez em quando para dormir comigo?”

O quê? Como assim?

“É que nós dois estamos sozinhos. Já há muito tempo. Há anos. Eu me sinto sozinha. E acho que é possível que você também se sinta. Então fiquei pensando se você gostaria de ir para minha casa à noite e dormir comigo. E conversar.”

Ela não está falando de sexo, mas de uma companhia: falar, cada um de si, “porque as noites são a pior parte. Você não acha?”.

Assim começa a história de Addie e Louis, que é contada em “Nossas Noites”, o último romance de Kent Haruf, que morreu em 2014, aos 71 anos (Cia das Letras, tradução de Sonia Moreira). Li o livro numa sentada, e me tocou fundo, talvez pela minha idade, que avança.

Como o menino Jamie, neto de Addie, eu tinha medo do escuro quando criança. Acordava meu irmão; eu não pedia para ele ligar a luz (o interruptor estava ao lado da cama dele), só queria que ele me respondesse.

Anos depois, durante a minha análise, eu lia muita poesia e estudava alemão. Georg Trakl era um de meus poetas preferidos; fascinava-me ele ter morrido cedo e de overdose, mas, sobretudo, na poesia dele, percebia o medo, que me era familiar, dos conúbios ameaçadores do silêncio com a escuridão.

Freud conta (“Introdução à Psicanálise”, 1923): “Um menino, angustiado por estar no escuro, chama a tia, que está num quarto ao lado. ‘Tia, fala comigo; estou com medo’; ‘De que te serve que eu fale, se no escuro você não me enxergaria?’ responde a tia. E o menino: ‘Quando alguém fala, tem sempre um pouco de luz'”.

Tenho a lembrança de uma estrofe de um poema de Hölderlin (não sei mais qual) em que o andarilho, de noite, canta para se dar coragem. Deveria ter um provérbio que diz: quem canta seu medo espanta; e outro: quem conversa seu medo espanta.

Addie e Louis são parecidos com Jamie. Eles não têm medo do escuro que está no fim do caminho, mas é porque acharam um jeito de resistir. Jamie, quando acorda no escuro, vai para a cama deles, e eles, no escuro, contam suas vidas, um para o outro. Cada um com o seu remédio.

Não seria mais fácil dormir? De novo, Hölderlin: um verso de “Pão e Vinho” diz: “Besser zu schlafen, wie so ohne Genossen zu sein”, melhor dormir do que estar sem companheiro. O problema é que nem sempre é fácil dormir sem companheiro.

Há uma insônia típica da terceira idade, pela qual a gente acorda de madrugada e espera a luz do dia, para poder dormir de novo. Cai bem, nessa estranha suspensão do sono, contemplar o outro que continua dormindo ao seu lado ou acordá-lo, para que converse conosco.

“Nossas Noites” é um história de resistência à morte e ao tempo que passa, pela descoberta que ainda é possível encontrar amizade e amor.

Os idosos sabem disso como nunca. Hoje, aliás, 80% dos adultos entre 50 e 90 anos são amorosa e sexualmente ativos.

Só não sei se os jovens aguentam isso. Os filhos sempre acham escandalosos os prazeres dos pais idosos.

E, contrariamente ao que reza a lenda, eles aguentam bem a morte dos pais, que é natural. O que eles acham contrário à natureza não é que os pais morram, mas que os pais vivam.


Contardo Calligaris, na Folha.



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