CRÔNICAS Silmara Franco

MEU PAI

Arquivo pessoal

Quero falar das coisas engraçadas que meu pai faz. E que ele nem sabe que faz. Em seu jeito inventivo e peculiar de viver, num permanente e bem resolvido estado de confusão, ele é um personagem de si mesmo. Este é um recorte biográfico autorizado, que sobressai ao resto de sua personalidade. Porque sou filha e vejo as coisas ao modo filial.

Antes, conto: ele é Antonio Batista Franco, ou só Tonico. Ou Joaquim, em indecifrável licença poética familiar, praticada apenas pelos três filhos – e nenhum dos três sabe ao certo como surgiu esse Joaquim. Tonico nasceu em Tapiratiba, interior de SP, em dois de fevereiro de 1932. Já foi sapateiro, contínuo de banco, depois caixa de banco, motorista de táxi, comerciante. Queria mesmo era ser cantor de ópera. (Desde que nasci, ouço-o cantar uma debochada versão, de sua autoria, para “La donna è mobile”, de Verdi. E eu cresci achando que “è mobile”, por conta da pronúncia, era o nome de uma mulher. Dona Imóbili.)

Pulo o resto da biografia, direto às toniquices. Apenas uma amostra delas; são muitas e variadas. Umas são antigas, outras atuais, algumas desde sempre. Não estão em ordem cronológica, já que todas poderiam se dar a qualquer tempo. É que não me recordo de meu pai sendo de outro jeito que não esse.

Quero contar que ele, sempre que viaja, leva uma bolsa térmica que faz as vezes de mala. Não adianta presenteá-lo com a melhor e mais bonita mala do mundo. É na velha bolsa térmica cinza que ele ajeita suas roupas, o Prestobarba, a escova de dentes, as meias, as cuecas, o livro, o caderno, a caneta, a boina, o rolo de papel higiênico. Também não adianta alertá-lo que aquilo ali não é uma mala. Ele não vai ouvir. (Interessante é ver que, tirante a estética e a convenção social, a bolsa térmica e a mala são a mesma coisa.)

Quero contar também que ele cantou o hino da França numa versão franco-brasileira impublicável, para meia dúzia de franceses desconhecidos, numa praça em Grenoble, e fez o maior sucesso.

E que ele comeu a ração da Luna, a cachorrinha da neta, pensando que era petisco, como amendoim ou coisa parecida. Quem mandou deixar em cima da mesa?

Que ele, quando se dirigia à festinha junina na escola do neto, errou de rua, entrou na festa errada e lá ficou, conversando com os convidados. Só depois de algum tempo achou estranho que nós não estávamos lá.

Que ele, num encontro de família, perguntou a uma tia nossa se ela, a própria, não tinha vindo.

Que ele, num velório, por engano disse ‘meus parabéns’ ao parente do morto, em vez de ‘meus pêsames’.

Que ele tomou um ônibus errado, foi parar no outro lado da cidade e voltou xingando o motorista que, segundo ele, deliberadamente havia feito outro itinerário.

Que ele, temporariamente incumbido de cuidar da nossa gatinha Dóris que precisava 1) usar protetor solar no focinho e 2) comer uma ração pastosa que vinha em um frasco semelhante ao do protetor, se confundiu e passou a ração em seu focinho. Ainda brigou com a pobrezinha, porque ela lambeu tudo, feliz da vida. Nunca descobrimos o paradeiro do protetor solar.

Que ele foi se deitar e se cobriu com uma toalha de mesa que estava no varal, pensando que era uma colcha. Detectada a confusão e com os pés descobertos, da cama, ele confessou: “Bem que vi, estava muito curta”.

Que seus óculos estavam meio largos e escorregavam no nariz, então ele lançou mão, sem cerimônia, de um considerável pedaço de fita crepe amarela que lhe atravessava a testa, para mantê-los no lugar. Tem, inclusive, registro fotográfico disso.

Que ele usa o cinto apertado demais, demais mesmo, com um medo inexplicável de a calça cair. Até os médicos, preocupados, já tentaram fazer com que ele o afrouxasse. Nada.

Que ele, de alguns anos para cá, conta as mesmas histórias como se fosse a primeira vez, mantendo, inclusive, a empolgação original.

E que, aonde quer que eu vá parar nesta vida, o mundo dará um jeito de deixá-lo perto de mim, por mais que eu tente fugir. E eu resolvi não discutir mais com Deus.

Por isso, quero registrar as coisas engraçadas que meu pai faz. Só as engraçadas; nada de falar das que me põem doida, às vezes. Uma espécie de inventário afetivo, para garantia das memórias e risadas futuras. Porque ele está velhinho e anda esquecendo tudo. E eu também vou esquecer. Aliás, já tinha esquecido de alguns causos que listei aqui, minha irmã que me ajudou a lembrar da maioria.

Silmara Franco
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Silmara Franco

Silmara Franco

Paulistana da Móoca, onde viveu por mais de três décadas. É publicitária por formação e escritora por salvação. Mora em Campinas (SP) com a família e a gataiada. Autora de "Navegando em mares conhecidos – como usar a internet a seu favor" e livro finalista do Prêmio Jabuti 2017, "Você Precisa de Quê?". Dona do blog Fio da Meada.