A partir da sexta semana da quarentena parece que tudo tem ficado gradualmente mais difícil. Na superfície, nada mudou. Ao redor também não. É muito além dos espaços visíveis que uma nova atmosfera vai tomando forma. É nos cansaços diários, no frio repentino, na fala enviesada, na impaciência, na luz que a gente não consegue enxergar.
Eu gosto de silêncio – falo pouco, não acho falta de conversar. Tem muita fala, muita história, muito barulho dentro de mim – pelos cantos da memória, nas minhas fendas do tempo, nas nostalgias e saudades. Mas o silêncio de perdas diárias derramadas em imagens estarrecedores e no luto que cada vez mais se agiganta, tem incomodado muito.
Na sétima semana, a presença da Morte ficou mais evidente e tem sido impossível ignorar a finitude.
Penso nas famílias que perdem seus entes queridos, gente como eu e você, muito além dos números e estatísticas fixados na tarja vermelha da TV: gente com nome, sobrenome, mulher, marido, filhos, pai, mãe, netos, irmãos, enteados.
Peguei-me pensando no porque não havia ainda uma lista de nomes dessas pessoas – como fazem com acidentes de aviões. É verdade que, aos poucos, vão aparecendo rostos: todo mundo conhece pelo menos uma pessoa vítima da doença. Eu, infelizmente, conheço várias.
Mas parece que mais gente tem pensado sobre isso e, nessa semana, o Portal Globo começou a organizar um “Memorial Covid” digital. Outro site, Inumeráveis, dá a oportunidade para familiares ou conhecidos contarem a história de alguém que morreu da doença – você pode enviar o nome, a data de nascimento, da morte, o local da morte e um pequeno texto sobre a pessoa. Será que quando isso acabar teremos um “Memorial Covid” em todos os países?
Ninguém consegue divisar o que vai ser do futuro e manter o otimismo começa a exigir um esforço a mais.
Pensadores já estão filosofando sobre a vida pós pandemia. Ouvi Cortella, Karnal, Pondé: eles falam mais do passado e são genéricos – quem vai se arriscar a dizer como o mundo vai lidar com tanta dor, trauma, com tanto susto?
Continuo lendo gente dizendo que vamos ter saudade do isolamento. Justificam: estão interagindo mais com os filhos, trabalhando menos, aprendendo a cozinhar, e por aí vai. Ou seja: vivendo no “País das Maravilhas” – como não? Nos últimos dias, mais de 600 – SEISCENTAS – pessoas tem morrido num espaço de 24 horas (sem contar a subnotificação, os “catalogados” como morte por “síndrome respiratória”), e temos nossa “Rainha de Copas” vociferando a versão moderna do “cortem as cabeças”: “calem a boca”!
Que me perdoem os felizes alienados, mas não vou ter saudade de nada disso. Saudade eu sinto do meu pai e do que me fez bem e, nesse momento – mesmo eu que sou uma pessoa prática e nada passional -, não consigo enxergar nada que vá valer a pena recordar, porque até no vacilo de uma alegria eventual, a sombra da Morte nos persegue – a nós e aos que amamos.
Na rotina de dias iguais – hoje é domingo ou quarta-feira? -, a gente se perde no calendário, nas horas, nos ciclos que absurdamente seguem ignorando a dor, dias lindos de sol outonal que em nada refletem nossa angústia diante de tantas ausências, tanto luto, tanta indefinição e medo.
Olho para os negacionistas com uma certa pena – essa gente que anda pelas ruas ignorando a Morte, sentindo-se super-herói, inatingível ou mesmo achando que é tudo fake news, como prega nosso governante irresponsável – você votou nele? Me desculpe, mas saiba que eu te desprezo.
Falando nisso, não posso deixar de citar a entrevista da Secretária de Cultura, a renomada ex-atriz Regina Duarte, mulher pela qual não consegui sentir nenhum tipo de sororidade e empatia – confesso que nunca fui fã, mas jamais imaginei que fosse esse lixo que se apresentou. E para mim não é possível ativar sentimentos nobres por mulheres escrotas, insensíveis e desprezíveis. Não tenho nenhum grau de transigência por esse tipo de pessoa – que ignora a dor alheia numa esfera absurda de insensatez e frieza, um pouco caso estarrecedor. Nem vou mencionar aquele show bizarro exaltando a ditadura, senão vou sentir vontade de vomitar de novo.
Várias vezes pensei em compartilhar o vídeo, mas fiquei com tanta vergonha que desisti. Não sei o que foi pior. Fiquei chocada quando ela foi perguntada por não dizer nada sobre os artistas, escritores, músicos, que estavam morrendo, e ela alegou que não ia transformar a cultura num obituário. Vergonha alheia nível máximo. Pavoroso…
Sei que precisamos nos animar, mas o ‘estilo Pollyana’ nunca foi pra mim: não dá pra se enganar por ilusões poéticas, religiosas ou utópicas – ninguém está seguro e quando isso acabar, o caos emocional promete ser ainda mais visceral e violento.
Por hora, apenas isso: se puder, continue em casa.
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