CRÔNICAS Silmara Franco

HORÁRIO DE VERÃO

O moço do caixa passava suas compras e quis saber se ela já adiantara o relógio. Ela colocou os mirtilos na esteira – era a primeira vez que via aquela frutinha azul –, abriu a bolsa e procurou o celular. Há anos o relógio ficara órfão do seu pulso, agora só conferia as horas pelo visor do telefone. O tempo definitivamente saíra da frente dos seus olhos, perdendo-se para sempre na barafunda na bolsa.

Não, ela ainda não havia ajustado a hora. Seu dia, portanto, acabava de ficar mais curto. Uma hora a menos, suspirou. E, como o coelho branco de Alice do País das Maravilhas, lembrou: estava atrasada.

Apressou-se em embalar suas coisas: o sorvete com o sabão em pó, a goiabada longe do queijo, o peixe para o domingo junto com a lasanha da segunda. Despediu-se e voou para casa.

No carro, caminho de volta, uma música fez questão de acompanhá-la pelo rádio:

És um senhor tão bonito
Quanto a cara do meu filho
Tempo tempo tempo tempo

Descarregou as compras e foi acertar os relógios. E não adiantou apenas uma hora, mas sim várias. Teve uma ideia: na folhinha atrás da porta, avançou um dia inteiro. Uma semana toda. Chegou ao mês seguinte. E quando se deu conta, havia ido parar a dois verões depois daquele dia no supermercado.

Desanimada, ela constatou que naqueles anos a única novidade havia sido os mirtilos. A pós-graduação não saíra do papel. A reforma do apartamento não passara da cozinha. Não conhecia o rosto do filho. Que nem nascera, pois não tivera coragem de dizer sim ao homem da sua vida. A caixa com os livros da última mudança ainda estava num canto da sala. E seus pais aguardavam sua promessa de levá-los para um cruzeiro. Achou que era hora de acertar os ponteiros com o tempo.

Entro num acordo contigo
Tempo tempo tempo tempo…

Não seria fácil, ela sabia. Mas combinou que voltaria ao dia do supermercado e, sem pressa, saborearia os mirtilos. Faria a matrícula na universidade, assim que chamasse o namorado para uma conversa séria. Teria uma semana para libertar seus livros do cativeiro de papelão. Marcaria as férias e ligaria para os pais. E decidiria, enfim, que os azulejos da cozinha seriam azuis. Em homenagem aos mirtilos. Ou blueberries.

Ficariam amigos, ela e o tempo. Não só em todas as estações do ano, mas nas de trem, nas de rádio. E, como uma promessa, lhe diria:

… acredito ser possível reunirmo-nos
Tempo tempo tempo tempo
Num outro nível de vínculo
Tempo tempo tempo tempo…


Silmara Franco
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Silmara Franco

Silmara Franco

Paulistana da Móoca, onde viveu por mais de três décadas. É publicitária por formação e escritora por salvação. Mora em Campinas (SP) com a família e a gataiada. Autora de "Navegando em mares conhecidos – como usar a internet a seu favor" e livro finalista do Prêmio Jabuti 2017, "Você Precisa de Quê?". Dona do blog Fio da Meada.