CRÔNICAS Silmara Franco

DE QUE LADO ESTAMOS?

cama

Arte: Juliana Moraes

Meu marido e eu já moramos em três casas diferentes. Nas três, sempre dormi do lado esquerdo da cama que, por sua vez, ficava próximo à porta. Não me recordo de essa ter sido, em nenhuma das vezes, uma escolha racional. Foi chegar e ir instalando travesseiro e pijama no “meu lado”. Nos hotéis, em casa de parentes, o padrão perto-da-porta se repete. É intuitivo.

(Leitores casados agora estão pensando em que lado da cama dormem e por que.)

Em território doméstico, a exceção foi inaugurada há pouco tempo: como ele se levanta antes, negociou para ficar próximo ao banheiro. Quis dar três passos e estar na ducha, em vez de dez, caso precisasse dar a volta na cama. Qualquer providência que o ajude a ganhar tempo pela manhã, ainda que alguns segundos, é bem-vinda. Ele não sabe, mas sinto falta do meu autoproclamado lugar.

Reparei em alguns quartos (eu reparo) e concluí que estou com a maioria: mulheres escolhem o lado mais próximo da porta, seja ele o lado esquerdo da cama ou não. Para os casais, a definição do lado de dormir é natural, regida por um acordo silencioso e invisível. Dispensa argumentações ou reivindicações. É feita de paz.

Coincidência? Ordem mundial? Ou lógica ancestral da maternidade, mesmo quando ela nem é exercida? Afinal, quem está perto da porta socorre primeiro (em tese; não vale para sonos de pedra) o filho que acorda chorando no meio da noite.

O mundo é organizado, explicado e obcecado pelos lados. O lado escuro da lua. O lado A e o lado B dos velhos discos de vinil. O lado esquerdo do peito, a abrigar, simbolicamente, amores e amigos. O lado direito do cérebro, a casa da criatividade. Política, educação, ativismo social, todos divididos em lados. O lado bom e o lado mau das coisas. O lado ocidental e o lado oriental. A vida do lado de cá, a vida do lado de lá. De se esperar que descanso e sonho, as fundações do mundo, seguissem também a geografia da lateralidade.

Na última configuração do quarto dos meus pais, minha mãe dormia do lado esquerdo, justamente o lado da porta. Há, portanto, herança genética no meu jeito de dormir. Desde que enviuvou, meu pai dorme em uma cama de solteiro. Nunca mais precisou escolher seu lado.


Silmara Franco
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Silmara Franco

Paulistana da Móoca, onde viveu por mais de três décadas. É publicitária por formação e escritora por salvação. Mora em Campinas (SP) com a família e a gataiada. Autora de "Navegando em mares conhecidos – como usar a internet a seu favor" e livro finalista do Prêmio Jabuti 2017, "Você Precisa de Quê?". Dona do blog Fio da Meada.