Dentre as coisas que minha mãe fazia para mim, no tempo em que eu era criança pequena e também quando virei criança crescida, há várias que não perpetuo com meus filhos, como seria natural. É como quebrar a corrente, furar o comboio afetivo, interromper a matrioska. Às vezes, me cobro. Outras, nem tanto. É meu jeito de combinar passado e presente.
Não faço bolos para meus filhos. Em casa sempre havia um: nêga-maluca, pão-de-ló, bolo com recheio, bolo sem recheio, bolo para o chá, bolo genérico, bolo de qualquer coisa. Tinha o tal do bolo-coelho, famoso na vizinhança e entre os familiares. Feito sob encomenda, demorava um tempão para ficar pronto. Lembro do seu caderno de receitas com o esquema para confeccioná-lo, passo a passo, e uma ilustração feita à mão do orelhudo. Receitas também são uma espécie de desenho.
Hoje, vitimada pelo tempo arisco e seduzida pela conveniência do bolo pronto, recorro à padaria e escolho um, embalado em isopor fácil, sem assadeira para lavar depois. Não me lembro mais do ronco da batedeira. Aliás, não tenho batedeira. Raspar restinho de massa na tigela é apenas uma doce, cristalizada e antiga lembrança. Nem sei mais o ponto da clara em neve. Não fiz nenhum dos bolos de aniversário dos meus filhos. Ao contrário de mamãe, que assinava todas as produções culinárias, festivas e não-festivas. O bolo pronto, vá lá, é bom. Mas é bolo sem história, sem certidão de nascimento, nem RG. Não tem signo. Dia desses, o mais mais velho comentou, com expressiva animação, o bolo que comera na casa da vizinha. Tinha gosto de mãe.
Não faço roupas para meus filhos. Mamãe costurava, tricotava e crochetava para nós. O guarda-roupa dos meus vem unicamente das lojas. Quando a caçula soube que eu andava tendo aulas de corte e costura, encomendou uma saia igualzinha à que eu acabara de fazer para mim. “Até aqui, mãe”, disse ela, marcando com a mãozinha a altura do joelho. Ainda não fiz. Devo-lhe isso, filha. E sequer elaborei uma boa lenga-lenga para justificar a demora. É porque não tem, mesmo.
Não nado com meus filhos. Não que eu tenha tantas lembranças maternas dessas situações. Nem sei se ela gostava. Mas entra para a lista, também. Sou avessa a experiências líquidas, embora saiba nadar. Minha atitude diante das águas é limitada à contemplação, à reverência. Não careço de maiores interações, enfim. Recuso sistematicamente o convite dos pequenos para o tchibum. Ao lado de deixar crescer meus cabelos, esse é o maior desejo deles. Um dia, quem sabe. O tchibum, claro.
Das coisas que faço para meus filhos, independentes do legado parental – como desenhar com eles, passar longas horas nas livrarias, promover sessões de cócegas, cortar-lhes as unhas enquanto eles assistem TV, preparar-lhes banana amassada em forma de coração – , qual delas eles imortalizarão junto aos meus netos e qual eles quebrarão a corrente?
O futuro do pretérito, no quesito tradição, nunca será perfeito.
- ALLAH-LA-Ô - 08/02/2024
- FELIZ NATAL - 23/12/2023
- PARA QUEM NÃO ACREDITA EM PAPAI NOEL - 05/12/2023