In memorian Rubens Böttcher | * 13/09/1946 / † 04/07/1998
Meu pai tinha o dom da alegria – o que não quer dizer necessariamente que fosse feliz; quer dizer que ele era capaz de rir e sorrir de coisas tolas, de continuar olhando o lado bom na adversidade, de persistir onde a maioria desiste.
Ele era um homem bonito: os olhos verdes, sempre brilhantes; a pele clara, os cabelos louros, um charme elegante no jeito de andar. Sempre gentil, galante, sedutor – um mestre, aliás, na arte de seduzir: quando conheceu minha mãe tinha sete namoradas.
Seu tom de voz era baixo, suave e ele raramente se alterava. Contava piadas (tinha um arsenal delas!) e vivia assoviando como se a vida se resumisse numa canção sem fim. Adorava Roberto Carlos e colecionava seus discos. Uma das imagens que guardo dele é a das manhãs de sábado, quando ele lavava os carros encarnando o próprio astro: a mangueira virava um microfone na garagem molhada, o alto e divertido som invadindo a rua.
Meu pai fez muitas coisas: trabalhou na bolsa de valores, teve restaurantes, loja de roupas, aviamentos, de materiais de construção, uma das primeiras casas de café de Campinas nos moldes atuais, mais de vinte anos antes desse modismo: era um visionário. Nunca o vi sem trabalho, estava sempre em movimento – um olho no agora, outro no futuro. Lia muito e era um homem inteligente, cuja mente nunca parava de pensar. Mas a coisa que ele mais gostava de fazer, era desenhar projetos de casas e construí-las. Isso nos tornava quase ciganos: quando ele acabava de construir uma casa, já tinha planos para outra – muito maior e melhor. Mas sua última casa, em Sousas, ficou sem acabar.
Era um homem corajoso, que nunca se deixava abater. Para as pessoas com quem convivia, tinha sempre uma palavra amiga, um conforto, e uma história divertida pra roubar um sorriso, mesmo de quem estava às lágrimas. Ele enfrentava o revés de peito aberto, e parecia não temer nada. Suspeito de que essa última observação seja uma meia verdade: muitas vezes eu o ouvi andando de um lado a outro durante a madrugada, o que me remete a pensar que ele também travava batalhas para exorcizar seus fantasmas.
Claro: meu pai tinha defeitos, era humano e normal. Mas não vou me perder em listá-los, porque eles se perdem diante da grandeza de suas qualidades. Problemas familiares são inevitáveis e talvez sirvam mais para acentuar o melhor das situações e das pessoas envolvidas.
Meu pai não chegou a ficar velho, e quando aos 49 anos descobriu a doença que o mataria dois anos depois, tratou de resistir à má surpresa, driblar a tristeza (a própria e a nossa), reunir forças e, resignado e valente, encarar o revés de frente: nunca reclamou da dor, dos tratamentos exaustivos, dos remédios amargos, da crueldade do destino – só da comida sem sal e da falta de vitalidade para praticar tênis, basquete, nadar, seus esportes favoritos. Mas até isso ele contornou: passou a jogar bocha, que lhe demandava menos esforço. Foi difícil vê-lo definhar, dia-a-dia sem poder conter o tempo. Foi bem doloroso ver uma parte de mim partindo, virando névoas, sombras numa escuridão para sempre sem luz.
Dezessete anos se passaram e, de fato, nunca me recuperei dessa perda: todos os dias uma parte de mim chora essa ausência. Nessa semana, que estive em Sousas numa passagem rápida, na ‘nossa’ última casa, uma angústia me tomou: você olha ao redor e percebe que o tempo passou, ficou um silêncio no lugar do riso, na frente da casa o tronco descansa sem presenças – e tem aquela dor que vai incomodar pra sempre.
Com meu pai aprendi de caráter, de humildade, generosidade, esperança, lealdade e verdade. Aprendi de perdoar – muitas vezes, a mesma pessoa todos os dias. Aprendi que sem trabalho não há sorte que nos acompanhe e que é preciso insistir. E todos os dias também me lembro que entre tantas coisas boas que minha memória abarca dessa figura tão especial para a minha vida, uma das lições mais importantes que recebi do meu pai foi a de que nada deve nos paralisar. Sempre haverão obstáculos, entraves, descaminhos; a questão principal é como queremos enfrentar isso tudo: deixando-se dominar ou resistindo bravamente. Nem sempre consigo me manter na segunda opção, mas me orgulho de ter o legado de alguém que, apesar de ventos nem sempre favoráveis, nunca se deixou ficar no chão…
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