Se eu não fosse o que sou, e caso tivesse talento, gostaria de ser três coisas: música (feminino de músico), chef e cineasta. Não que eu não goste do que faço, mas porque a vida me parece larga demais para a estreiteza da carreira única.
Primeiro, estudaria música para descobrir como nascem as canções que amo, e gastronomia, para entender de quê são feitas as comidas que adoro.
Para ser sabedora das notas todas, assim como quem domina ingredientes e modos de fazer. Escrever uma sinfonia seria tão fácil quanto preparar um penne ao pesto de manjericão.
Para apreciar um prato sofisticado da mesma maneira que saboreio um bom arranjo. Porque o paladar está na boca e nos ouvidos. Que, aliás, são tão próximos. E não deve ser à toa.
Para, ao ouvir música no carro, brincar de regê-la no ar com propriedade, e não feito maluca. Embora todo maestro em ação pareça um maluco. Pensando bem, a parte de reger pode ficar como está.
Para eu compor quando estiver triste e também quando alegre. E quando não estiver nem uma coisa, nem outra, naquele estado de calmaria que o mar tem, de vez em quando (porque alegria e tristeza nada mais são do que ondas). Só pelo prazer de combinar os acordes e dá-los de presente aos instrumentos. Aquilo de correr para o violão, num lamento, e a manhã nascer azul.
Depois, estudaria cinema para transformar em documentário a vida de gente comum, que ninguém acha interessante. Apenas para provar o quanto se pode estar enganado.
Para gravar em película as cenas que gosto de imaginar, mas que nunca acontecem.
Por exemplo, a da moça entrando numa livraria e reconhecendo a mulher do caixa como sua mãe, que não vê há dezenove anos. Pelo jeito de ela prender os cabelos, que é igual ao seu. O pai a levara para longe, ainda bebê, e ela nada sabia da mãe, exceto pela fotografia de casamento que ele guardava numa caixinha branca, junto a um anel solitário sem a pedra.
Ou então, a cena da freira que resolve, em plena praça, levantar o hábito, tirar os sapatos e mergulhar os pés na fonte. Porque está um calor infernal e ela tem certeza que Deus prefere vê-la feliz.
Ou, ainda – e essa é a minha preferida –, a sequência do rapaz que encontra na esquina de casa uma cachorrinha branca e marrom com coleira de coração, e se lembra de ter visto, no dia anterior, uma faixa na rua. Dizendo sabe o quê? Que uma cachorrinha branca e marrom com coleira de coração se perdeu.
Confesso: pensar nisso me dá vontade de ser outras coisas também. Novas profissões que acabei de inventar e, acredito, fazem uma falta danada neste mundo. Por exemplo: demonstradora de verdades, exterminadora de mentiras, costureira de corações rasgados e fabricante de cadeiras especiais para assistir por-do-sol. Esvaziadora de sacos cheios e reparadora de gente chata. Tradutora e intérprete de bichos, caçadora de tesouros no final do arco-íris e vendedora de gargalhadas.
O problema é que não sei onde tem escolas para eu aprender esses ofícios. Embora saiba que há bons mestres em várias dessas áreas. E, apesar de ter noção do quanto dá para ganhar depois de formado, sem ser dinheiro, a grande dúvida é se, em alguns casos, eu teria emprego. E não é porque passei dos quarenta.
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