A garotinha de presumidos três anos atravessa a rua de mãos dadas com sua mãe presumida, na faixa de presumida segurança. A mulher, com pressa, muita pressa. A garotinha, pressa alguma. Tanto que inventa, nos quinze segundos de travessia, sua brincadeira particular: só pode pisar nas faixas brancas. O que, devido ao tamanhico de suas pernas, é um exercício e tanto. Lá vai ela, caprichando nos pulos, determinada em seu objetivo, rindo gostoso entre um salto e outro. A mãe, constrangida, tenta, em vão, abreviar a história. Quase leio o apelo em seus lábios, “A moça quer passar!”.
A moça – eu – quer mesmo passar. Estou atrasada (quando não?). A verdade é que não há como não deixá-las em paz. Como motorista, meu dever de dar preferência ao pedestre só não é maior que meu direito de curtir a cena.
Faço sinal para a mãe, “Relaxa”. Ela entende; mães são telepáticas. Não que eu seja boa nisso o tempo todo (pelo contrário) mas, naquele instante, os significados de urgência e importância, e a sempre duvidosa relação que transita entre ambas, ganharam clareza instantânea e inabalável.
O parentesco – mãe e filha – é adivinhado, posto a tipicidade do comportamento, digamos, repressor. Fosse madrinha da garota, esta não só a autorizaria pular à vontade, como talvez entrasse na brincadeira. Mas a pai e mãe parece não ter sido concedido o dom da paciência; só a segurança branca do relógio lhes sustenta.
A pressa ignora o universo da leveza. A espera o contempla. Feitos de pressa, somos a ignorância em forma de átomos de carbono.
As duas alcançam o outro lado da calçada. A mãe agradece o inagradecível. A garotinha não quer nem saber, já procura mais coisas para fazer.
Busco no retrovisor o reflexo dos rostos de meus filhos. Vem a insegurança: levarão eles consigo, vida afora, a lembrança das tantas faixas brancas não-brincadas?
Tão simples ser mãe do filho dos outros.
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