Entro na loja espaçosa, cheirosa, colorida e iluminada – bem do jeito que o Diabo ensinou aos marqueteiros – e peço:
– Quero ver os batons.
Dizem que ruivas ficam bem de batom vermelho. Testa aqui, testa ali, decido.
A vendedora apanha o batom vencedor e inquire, com a cara nem um pouco lavada (sua chefe jamais permitiria a infração, é uma loja de cosméticos):
– Não quer aproveitar e levar um xampu também?
Por instantes, busco mentalmente a relação direta entre cabelo e boca, a fim de justificar a oferta, e só encontro estas: ambos ficam na cabeça, são paroxítonas e têm quatro letras comuns.
Entrei ali movida pelo desejo de um batom, e não xampu. Fosse assim, teria feito diferente desde o início:
– Quero ver os xampus.
Ou ainda:
– Quero ver xampus e batons.
Uma vez que não foi essa a minha abordagem, declino o convite para “aproveitar”. Estou ficando boa nisso de recusar, nas lojas e na vida, coisas que não quero ou preciso.
– Só o batom mesmo, por favor.
Ela é brasileira, não desiste nunca e é comissionada:
– Os hidratantes estão com 20%, não vai aproveitar?
Moça, vamos nos sentar ali fora e conversar. Qual o objeto do aproveitamento proposto, afinal de contas?
Seria aproveitar o fato de que pagarei com cartão de crédito, e com cartão, já sabe: a gente não vê o dinheiro saindo da carteira, se empolga, e depois de quarenta dias, chora? Nesse caso, quem aproveita é o banco e a administradora do cartão.
Ou aproveitar que a loja foi projetada para ativar todos os meus sentidos e me fazer comprar o que preciso e , principalmente, o que não preciso? Nesse caso, quem aproveita é o dono.
Ou ainda: aproveitar que a vendedora é simpática e faz cara de cãozinho pidão, só faltando entortar a cabeça para o lado, e eu me sentirei feliz em fazê-la feliz, assim como quem afaga um cãozinho pidão? Nesse caso, quem aproveita é a vendedora, que engordará suas comissões no final do mês.
Parece-me que todo mundo aproveitará bastante o fato de eu sair da loja com batom, xampu e hidratante. Menos eu, que terei cem reais menos na conta e coisas demais no armário.
Eu, que só queria um batonzinho vermelho para confirmar se as ruivas ficam mesmo imbatíveis com ele, costumo aproveitar quando passo ao lado da sorveteria para tomar um picolé de limão.
Aproveito que o gato está dormindo na minha cama e tasco-lhe um cafuné demorado.
Aproveito quando não está chovendo e vou caminhar na Lagoa do Taquaral antes de buscar as crianças na escola. De vez em quando, aproveito e como um pastel também.
Sempre aproveito se a Nutella está barata, e levo dez potes de uma vez.
Mas, por ora, penso em inverter a situação e propor que a vendedora, não eu, aproveite. Diria-lhe assim:
– Você não quer aproveitar que tem pouca gente na loja e ligar para sua mãe que fez quimioterapia ontem e está toda tristinha e nauseada?
– Por que você não aproveita que é sexta e responde aquela mensagem dele, parada no seu WhatsApp desde a semana passada? Ele viu os dois risquinhos azuis e está desolado. Bobagem competir com o futebol da quarta, meu bem. Como diria Djavan, você insiste em zero a zero e ele quer um a um.
E o uso indiscriminado do verbo transitivo direto e indireto parece acometer todos ali. A moça do caixa entrega minha compra (composta de um item – salve!), e pergunta se quero aproveitar e fazer o cadastro. Balanço a cabeça, que tem cabelos, abro minha boca e digo:
– Não, obrigada. E aproveita, que hoje eu estou de bom humor.
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