Na manhã de 31 de Julho eu estava no Dentista quando duas fotos pipocaram no meu celular: vinham da Veterinária que cuida das nossas ‘filhas de quatro patas’ – naqueles dias, só Maya, uma Labradora Chocolate de sete anos.
A Dra. Valéria de vez em quando mandava fotos. Ela dá suporte a uma Ong que resgata animais abandonados e cuidava de uma Labradora ‘Black’, Lua, deixada no Posto de Gasolina em frente ao Condomínio em que moramos.
A mensagem dizia: “Olha que linda, a cara de vocês!”
Mas ela sabia que as chances comigo eram poucas. Desde que nossa Brinny, a Basset de 15 anos, havia nos deixado – na véspera do Natal em 2015 -, eu afirmava não querer um novo cachorro. Maya, apesar de sempre ter tido companhia, parecia bem adaptada – quando chegou para nós, em Junho de 2010, presente da minha enteada para a celebração dos 60 anos de Raul, meu marido -, duas Bassets moravam na casa, Sandy e (sua filha) Brinny. Sandy nos deixou em Dezembro daquele mesmo ano, e Brinny cinco anos depois – e, no caso dela, eu sofri demais, porque era uma companheira espetacular, extremamente amorosa e adorável.
Repassei as fotos para Raul – mais pra me livrar da questão e não fazer pouco caso (adoramos a Dra. Valéria) – e, confesso, esqueci o assunto. Mas quando cheguei em casa, meu marido informou que ia lá vê-la – “Não custa nada, só pra não ignorar mais uma vez, e de repente pode ser uma boa companhia para a Maya.” Desconfiei: como era uma questão ajustada entre nós não ter outro cachorro por enquanto, não entendi muito bem o argumento. E avisei lacônica: “Apenas lar temporário – e se for o caso, hein?”
Pouco mais de meia hora depois ele ligou avisando que ia trazê-la – lar temporário -, pois era muito querida e estava muito estressada no abrigo, magrinha -, e pediu para esperá-lo com Maya na área reservada para passeio de cães do Condomínio, para a aproximação entre as duas (dica da Vet).
Fui: ambas se reconheceram sem grandes problemas, mas ao chegar em casa começou o pampeiro: Maya, que é uma Labradora hiper pachorrenta e detesta barulho, não parava de latir. Lua deu algumas latidas – talvez pra se impor, porque também é hiper calma -, e a segunda-feira transformou a casa numa ‘praça de guerra’. Lembro-me de, dias depois, os vizinhos, ao entenderem o que havia se passado, comentarem que estranharam muito os latidos de Maya – só podia estar acontecendo alguma coisa muito nova! –, porque ela é conhecida pelo silêncio e tranquilidade.
Naquele dia o trabalho não rendeu – nós trabalhamos em casa e foi impossível concentrar-se. Instalou-se uma desordem completa e quase pedi para meu marido levar Lua de volta – do que eu teria me arrependido terrivelmente. Só que naquela segunda-feira o caos foi tanto, que achei que não seria mesmo possível para nós ter outro cachorro: Maya parecia disposta a nunca mais aceitar divisão. De modo que quando a noite chegou e trouxe certo silêncio a ponto de conseguirmos ouvir as notícias na TV, julgamos ter ocorrido um milagre (nós, que somos agnósticos, imagine só…).
Mas a madrugada ainda prometia mais surpresas, sustos e impactos. Sim, porque nenhum cachorro – nem gente, nem criança, nem ninguém – passa pelo abandono sem sequelas. E aquela primeira noite com um cão abandonado sob nossa guarda, nos deu uma dimensão terrivelmente triste da crueldade.
Sem nenhum histórico de sua vida pregressa de aproximadamente três anos, durante o dia já havíamos descoberto que essa Labradora gentil – como só os Labradores conseguem ser -, possivelmente tivera uma vida solitária, de piso frio (as patas ‘achineladas’ revelaram) e pouco contato humano. Ela não subia escadas, nem sofás ou camas. Mas era muito educada: não comia objetos e fazia suas necessidades no gramado. Não rejeitava afago, mas não esperava por ele.
Entretanto, o inesperado maior foi durante o sono. Aqui, os cachorros dormem dentro de casa – Maya dorme na nossa cama, assim como Sandy e Brinny sempre dormiram. Naquela primeira noite, por conta do stress do dia, arrumei os edredons para Lua no hall na porta do nosso quarto; fechamos a escada com grade para que não houvesse nenhum risco de queda, já que ela realmente não sabia subir ou descer sozinha. No hall há bastante espaço e da nossa cama conseguíamos vê-la. Aconchegada – e cansada – ela não demorou para se acomodar e adormecer, e nós também nos recolhemos.
Duas horas depois despertamos com um barulho que parecia balançar a casa. Quando se acorda subitamente, a gente demora um pouco pra tomar pé do que está ao redor e, num primeiro momento, achei que ela tivesse rolado escada abaixo. Mas então me lembrei que a tínhamos ‘fechado’. Quando me aproximei da porta, no escuro, entendi: no hall tem um banquinho de madeira e Lua havia ‘escorregado’ para debaixo dele – talvez acostumada a dormir sob alguma coisa; ela ‘chorava’ e se debatia, deitada, como se estivesse correndo, batendo na parede e movimentando o banco (que é leve). Nós a chamamos pelo nome, mas ela não acordava.
Senti medo: o que seria aquilo? Ela nos morderia se fosse tocada? Deveríamos nos aproximar? Arriscamos: chegamos perto, a tiramos de debaixo do banco, e a acordamos o mais delicadamente possível. Ela nos olhou assustada, um pouco confusa, mas quase imediatamente voltou a dormir.
Nós ficamos ali, paralisados, eu, Raul e Maya, cada um com seu estarrecimento, tentando imaginar o tamanho daquele estranhamento que ela vivenciava: uma casa desconhecida, gente que ela nunca havia visto, um lugar para dormir totalmente insólito, nenhum cheiro ou referência familiar. E, diante desse cenário, fizemos o que estava ao alcance: forramos a parede e toda a volta dela com almofadas, na tentativa de evitar qualquer desconforto ou mesmo que ela se machucasse. Ela teve ‘crises’ a noite toda, em horas intercaladas, e logo pela manhã ligamos para a Veterinária pedindo uma consulta (que certamente pensou que íamos devolvê-la); só que o que ela não sabia era que aquela ‘criança de quatro patas’ já morava em nossos corações. O que a gente precisava, era de algum tipo de amparo para saber como lidar com um passado obscuro.
E a partir daquele dia, ela passou a se chamar Luna; sua coleira de couro numerada foi devolvida para a Ong e ela ganhou uma coleira rosa com seu novo nome. Vacinação, banho e, a partir de então, todo amor, aconchego e cuidado que nos é possível lhe dar.
Nos dias que se seguiram, Maya e Luna foram se adaptando, assim como nós. No terceiro dia, com Maya já dividindo território, ela passou a dormir ao lado da cama. Descobrimos que ela tem uma certa fraqueza nas patas – provavelmente por passar muito tempo confinada e sem movimento. Devagar, ela aprendeu – inclusive com a ajuda de Maya – a subir e descer as escadas. Agora que é livre, passeia todos os dias, adora correr e brincar; mas por conta de sua limitação, tem muitas quedas e sente dor – mais ou menos um mês depois de estar conosco torceu uma das patas, que teve que ser imobilizada. Gradualmente, com vitaminas, alimentação e tratamento, vem fortalecendo sua musculatura e vai se adaptando a uma nova vida. Sua ansiedade também está diminuindo e ela já se aninha no sofá e na cama, recebe e dá carinho. Aos poucos, vai entendendo que essa é sua casa – e o será até o fim de seus dias.
As noites não chegam a ser calmas, mas as crises de ‘corrida noturna’ tem melhorado. Sempre nos perguntamos se ela era obrigada a correr de alguma coisa… Muitas vezes nos é difícil não saber nada sobre seu passado – embora, para nós, ela tenha nascido em 31 de Julho.
O que sabemos? Que seu ‘tutor’ (???) parou no Posto e enquanto sua SUV era abastecida, tirou-a do carro e começou uma conversa com o frentista, contando que estava se separando da mulher e não podia mais cuidar do animal. Pediu para o rapaz segurar a coleira enquanto ele efetuava o pagamento e, no segundo depois, entrou no veículo e arrancou rapidamente, sem olhar pra trás. A gente ouve tantas histórias assim, chega a pensar que são invenção…
Luna tem sido um presente diário para nós – e um aprendizado cotidiano. Nunca antes tivemos um animal adotado e tínhamos uma certa reserva exatamente pelo oculto que isso engloba. Mas ela nos ensina todo dia sobre a beleza de se dar uma chance ao que tememos, de acolher e deixar o amor cuidar dos mistérios.
Luna, nosso satélite negro, é nossa filha eterna, uma dádiva da vida. Tudo o que ela viveu antes de nós, por pior que tenha sido, não lhe tirou a doçura, mas lhe imprimiu uma amarga tristeza – que às vezes se vê em seu olhar, mas todo dia se desfaz um pouquinho. E o que esperamos, é ser para ela os ‘pais de duas pernas’ capazes de apagar todas as suas cicatrizes de descuido e desamparo, escrevendo todos os dias uma nova história – e, dessa vez, só de memórias felizes.
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Adote um animal abandonado. Se possível, adote um animal adulto.
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