CRÔNICAS Silmara Franco

ASSIM NA TERRA COMO NO CÉU

“Aqui está seu tíquete. Embarque no portão 3, boa viagem”. É domingo. O destino: Salvador, na baía de Todos-os-santos.

No ar, lá pelas tantas, vêm os comissários de azul e branco oferecendo coisinhas para o fim de noite. Um deles tem no rosto um sorriso e, no crachá, nome de arcanjo. Aproxima-se de mim, “A senhora gostaria de beber alguma coisa?”. Peço café. “Não temos, senhora. Só água, refrigerante e suco”. Desapontada, agradeço. Paciência. Retorno ao meu estado de quase-cochilo, sonhando com uma xícara de café bem quente e forte entre as minhas mãos.

Vinte minutos depois, ele tenta mais uma vez. “A senhora não quer nada mesmo?”. Faço beicinho, “Só um café…”. Mas, já sei, não tem café.

Meia hora mais tarde, ele reaparece. Desta vez, pede que eu o acompanhe até o fundo da aeronave. Oh!,meu pai, que será?, penso, enquanto tiro os fones do ouvido. Vou atrás dele, me equilibrando em meio à leve turbulência. Ele remexe os armários, abre uma portinhola, avisto uma centena de pacotes de salgadinhos. Como é que cabe tudo ali dentro? Ele segreda, baixinho: “Não podemos servir café a essa hora. Mas eu vou fazer um pra você”.

Meu sorriso foi de asa a asa. O “senhora” lá de trás fora substituído, agora o arcanjo uniformizado era meu chapa. Enquanto prepara o café exclusivo e proibido, ele pede para que eu não conte a ninguém. “Será nosso segredo”, trato de tranquilizá-lo. Aviso, porém, que não tenho como deter o aroma se espalhando pelo corredor. “Não sei de nada”, direi, em caso de inquisição.

Arcanjos, os anjos da terceira hierarquia, são “os que executam as ordens de Deus e conhecem a fundo a natureza humana”. Explicado estava. Deus sabe que o café é uma espécie de oração.

Ele me entrega o copo de isopor, “Açúcar ou adoçante?”. Tomo ali mesmo, escondidinha e feliz da vida. Estar nas nuvens ganha novo sentido.

Como agradecer? Não poderia elogiá-lo publicamente pelo seu ato de compaixão. Longe de mim complicar a vida do rapaz, fazê-lo levar um pito do chefe. Não sabem eles, CEOs cravados em terra firme, que, às vezes, não são os milhões investidos em propaganda, mas a regra quebrada, um improviso no script pronto, uma justificada desobediência, que gravam o nome da companhia na nossa memória. Avião é commodity. Quem faz um voo é gente de carne e osso e, eventualmente, um par de asas invisíveis.

Cheguei acordadíssima ao destino, graças ao arcanjo de bordo – meu verdadeiro salvador. Porque, no final das contas, foi feita a minha vontade. Assim na terra como no céu.

Silmara Franco
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Silmara Franco

Silmara Franco

Paulistana da Móoca, onde viveu por mais de três décadas. É publicitária por formação e escritora por salvação. Mora em Campinas (SP) com a família e a gataiada. Autora de "Navegando em mares conhecidos – como usar a internet a seu favor" e livro finalista do Prêmio Jabuti 2017, "Você Precisa de Quê?". Dona do blog Fio da Meada.