CRÔNICAS Silmara Franco

ALLAH-LA-Ô

Não é da ciência, da tecnologia ou da sustentabilidade que depende a sobrevivência e a evolução da nossa espécie. Nem da solução para a violência urbana ou do fim da desigualdade social. Não é nem do amor ao próximo, se você quer saber. É do ar condicionado.

Não há respeito, nem gentileza, ética ou boa educação – substantivos de um povo que vai pra frente – que sobreviva quando os termômetros registram 35 graus, com cara de 40. Não é sensação, é desespero térmico.

No calor, o mau humor aflora. A impaciência progride. A rabugice vence. A preguiça reina. A deselegância invade. A pressão cai.

Você troca a feira livre pelo sacolão refrigerado do supermercado, elimina os parques do seu final de semana, ignora as lojas de rua e qualquer outro ambiente que não esteja envolvido com BTUs.

Você resmunga com o frentista do posto porque ele enrola para passar o seu cartão e, enquanto isso, é preciso manter o vidro aberto com o bafo suficiente para cozinhar batatas invadindo seu carro.

Você amaldiçoa os ônibus, os trens, o inventor da gravata, do tailleur. Você amaldiçoa qualquer coisa, essa é a verdade. Exceto o ar condicionado.

Buscar os filhos no portão da escola vira martírio, “Ainda não saíram?”. Enquanto eles não aparecem, você se abana como dá, comenta com a mãe do colega que o calor está demais, pensa em ir esperar dentro do carro, assim poderá ligar o ar condicionado. Você se questiona, nessa hora, até o fato de ter tido filhos. Que mulher dá conta de ser boa mãe, se acaba de derreter?

Exercitar-se ao meio-dia em volta da lagoa, no calçadão ou na ciclovia é sauna-suicídio. Quem são esses doidos varridos?, pergunto, enquanto passo ao lado deles – de carro, evidentemente. Confiro o termômetro do painel que marca deliciosos 20 graus internos, em contraponto aos quinze a mais lá fora. Quase sinto a compaixão brotar em meu coração.

Não é no verão que a humanidade prospera. As maiores invenções não se deram, por certo, em dias extraordinariamente quentes – nem o aparelho de ar condicionado. Ninguém escreve um best-seller ao lado de um ventilador. Monalisa, repare, não usava vestes vaporosas quando foi retratada. “O Trenzinho do Caipira” só pode ter sido composta em um agradável outono, ou qualquer outra época em que Villa-Lobos não estivesse suando em bicas.

Até para a Aurora, moça da marchinha de carnaval, o ar refrigerado estaria garantido – caso ela fosse sincera. Qualquer sirigaita mudaria de vida diante da promessa.

A menos que o ar condicionado faça parte da cesta básica, a previsão é desanimadora. Para quem está no hemisfério sul, até março só resta o alalaô.

Silmara Franco
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Silmara Franco

Silmara Franco

Paulistana da Móoca, onde viveu por mais de três décadas. É publicitária por formação e escritora por salvação. Mora em Campinas (SP) com a família e a gataiada. Autora de "Navegando em mares conhecidos – como usar a internet a seu favor" e livro finalista do Prêmio Jabuti 2017, "Você Precisa de Quê?". Dona do blog Fio da Meada.