No restaurante, brinco de colocar a saia azul da mulher de blusa xadrez, sentada na mesa em frente, na moça de sapatilha de florzinha, em pé ao lado da porta. Penso também que ficaria melhor a bolsa da que acaba de entrar, com longas alças e fivela de borboleta, na que está sentada aguardando a conta. E o vestido rodado da ruiva que traça um pratão de yakisoba bem que ficaria bonito na garçonete, limitada ao triste uniforme que lhe aperta as ancas.
Não devo ter brincado o suficiente com as minhas bonecas de papel, quando era criança.
Em cinco minutos, altero a configuração do público feminino do restaurante. Corrijo, melhoro, salvo. Pena que nenhuma delas ficará sabendo.
As bonecas de papel não eram como as de hoje, superproduzidas, compradas em loja. Nós mesmas as fazíamos. Minha mãe desenhou as primeiras para nós. Recortava a cartolina, criava os modelitos. Depois minha irmã e eu aprendemos a técnica e passamos a criar nossas próprias bonecas. Não podíamos esquecer de fazer a abinha para dobrar sobre os ombros, na cintura. Caso contrário, a roupa não parava. Eu não fazia somente roupas, mas os acessórios também: chapéus, bolsas, botas. Para um guarda-roupa completo, bastavam papel e lápis de cor.
Hoje, a brincadeira dispensa a cartolina e o lápis de cor e pode ser brincada em qualquer lugar: supermercado, fila de banco, escritório. Até na aula de meditação. Só não dá para chamar a irmã para brincar junto, agora ela mora longe. Também não posso impedir que as bonecas, no meio da brincadeira, vão embora.
As bonecas de papel só tinham frente. Não tinham perfil, nem costas. Mesmo assim, rendiam uma tarde inteira de diversão. Não havia vitrine impossível para elas. Os casacos mais sofisticados, daqueles longos, elas podiam ter. Vestidos de baile, botas até o joelho, chapéus maravilhosos. Minissaias, vestidos “de ficar em casa”. Não havia roupa que a minha imaginação não pudesse lhes dar.
As mulheres do restaurante têm frente, costas, perfil. São bonecas em 3D. Apressadas, trazem para o almoço, pendurados no pescoço, os crachás das empresas onde trabalham. Não querem brincar. Alheias a mim, servem-se das batatas e dos tomates, pedem refrigerante zero, riem alto, engolem a refeição, levantam-se, vão embora. O papel delas é outro.
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