Marcha completando o pátio, o fim da linha sendo justamente princípio da outra, sem descontinuidade, quebrando-se para o ângulo reto. Não cede um milímetro na posição do corpo, justo, ereto. Porque Joana julga-se absolutamente certa na nova ordem. Assim, anda de frente, o ombro direito junto à parede. Teima em flexionar as pernas, um passo, outro e mais, as solas dos pés quentes através do solado gasto. Agora o rosto sente a quentura do muro, voltado inteiramente, quase roçante – até o fim da linha onde junta ombro esquerdo e marcha de costas na retidão da parede.
Finalmente, acha-se na metade da quarta vez, todo pátio contido no âmbito do olhar parado. Anda certo, costas deslizantes como lâminas, na proteção do seu tempo, o muro. Repete, sentindo a certeza da quarta vez. Mais e mais, porque cumpre um dever.
Quantas vezes Joana marcha rigidamente de ângulo a ângulo?
– Ninguém sabe. Nem Joana.
Vê-se parada, imaginando o quadrado das horas. Isto vem justamente aliviá-la da sensação incômoda de que um corpo redondo ilumina o pátio. Retesa-se, ajustando-se no espaço certo, fora de perigo. Perfeitamente integrada, em forma. Uma pausa completa. Como na pedra. Joana imóvel, quadriculada no pano do vestido, marcando um tempo ainda imarcado, porque novo. Um novo tempo, nascido duro, sofredor. O quadrado das horas.
No meio do pátio, parada, obedecendo a ordem. Não sabe por que, a palavra meio salta-lhe morna, insinuante como uma ameaça remota. Um orifício no muro, meio de fuga.
– Para onde e por quê?
Deve ter ouvido isto. Ela não se desviaria tanto da lógica, mesmo pensando num momento de descuido e a lógica está no quadro. Precisa pensar certo. Joana não pode deixar-se trair. Entretanto, não sabe de régua que lhe permita certificar-se da justeza, da retidão das palavras. Há neste verbo precisar uma sinuosidade que vagamente percebe e isto é uma ameaça. Não poderá admitir contrariando sua posição na vida como verbo poder, neste tempo, fere sua época.
Época de Joana.
Não lhe foi dada ainda uma linguagem adequada e não consegue pensar sem palavras. Sente-se incompleta. Sente-se incompleta, sem os instrumentos necessários.
– Não pensar, em posição de sentido, é a ordem, por enquanto.
E Joana enquadra-se no momento.
Plana – lisa – justa.
Um marco no novo tempo. Cumprido o dever, fortalecida e distanciada das curvas, o pensamento quadrado no ar, quase sólido e o olhar, reto como lâmina sofrendo o impacto, voltando e enquadrando-se nos olhos impossíveis. Joana está certa no plano vertical.
Ela somente compreende o grande significado disto. Imóvel poupando o corpo, principalmente o rosto que sente duro na parte inferior, sustentando o quadro. Não pode mutilar-se na lisura da curva. Não pode perder a forma. Mas a impertinência do seu nome é uma realidade e Joana escuta-o num tom irritado, sentindo-se gelar nos ângulos, pontos vulneráveis. Procura a proteção do novo tempo e sem pensar anda de costas dois passos, sofrendo as modulações das vozes, que como um espelho mostram-se refletidas no corpo de Joana; como um espelho o corpo reflete sem aberturas. Na perfeição do quadro, sente-se sensível ao formigamento que a rodeia. A futilidade das coisas irrita até o muro de pedra. Joana acredita no que é e na certeza do seu tempo.
Entretanto, está só, num quadro ainda infecto de moscas e serpentes ondeadas. Dançam ao seu redor e Joana não tem palavras. Num tempo quadrado, vive-se sem elas na perfeição das coisas, mas a dança dos sons é característica fútil dum subtempo e ela não deve perder-se. Joana teme a roda que ameaçou mostrar-se nos rostos redondos fitando-a. Concentra-se nas linhas certas do seu próprio e vê-se refletida no muro cinzento. Uma nova figura, um destino.
Nasceu, inaugurando um tempo. É o marco da nova época.
Entretanto, um milímetro de desatenção pode levar-lhe os olhos a rotações incalculáveis, catastróficas. Pode até cair numa espiral e, em ascensão, transformar-se num ponto irritante como a cabeça de um alfinete. Luta para manter-se enquadrada na hora, o pensamento liso à espera da forma de expressão: uma nova linguagem. Fugindo das palavras, pensa em números certos, como 44 e 77. Desenha-os mentalmente no muro para a sua sobrevivência, até que estremece na sinuosidade do 60. Ah! Joana não sabe por que, mas o número 60 aproxima-se qual cobrinha traiçoeira. Uma áspide. Também os números têm nome. Figuras sinuosas passeiam no âmbito de sua visão quadrada. Não procura vê-las. Impõem-se impertinentes formando uma quase culpa para Joana que nasceu sem lembranças, porque estas chegariam sinuosas, e isto é outro mundo.
– A pedra não repele os flocos fúteis de neve. Apenas pedra é pedra.
Mas pessoas são como moscas, tentando atrair atenção, fazendo dançar, correr o risco de quebrar-se nas curvas, caindo esfacelada, sem significado. Joana ignora, propositadamente, a curva duma folha banal perto de seus pés. Esqueceu as flores e espera sons rápidos, retos, geométricos para fazer-se entender. Vagamente tem noção das figuras incomodativas, ondeadas de banalidade que tentam atrair-lhe atenção – não cede um milímetro para não desmoralizar-se. Deve sobreviver.
Alarmada, sente o suor correr-lhe pela testa, numa linha reta. Uma intermitência, o ponto trazendo-lhe o caos.
– Não, não admito bagas de suor.
Haverá sim, uma linha reta até o solo, subindo imediatamente evaporada. Porque uma pocinha seria seu afogamento.
Foge do círculo.
– Mas a linha é formada de pontos!
Não no seu tempo, raciocina rápido, quadrando o pensamento. Joana não pode sentir-se alarmada. O alarma começa de um ponto. Significativo ou consciencioso, atingindo num crescendo o grau de alerta ou alarma?
– Alarma pode surgir como numa tela de cinema, de repente?
Ah! Como faltam instrumentos!
– Joana, saia do pátio, venha para o dormitório.
Muitas danças numa banalidade sônica. Entretanto, escutou quase contorcendo-se. Não pode responder, que não tem ainda meio de expressão. Como fazer pra explicar que está enquadrada num novo tempo? Não pode sequer dar meia volta. Precisa poupar-se, conservando a forma.
Entretanto, precisa explicar o que só ela entende. Puseram-na quadrada, certa, objetiva, num tempo novo, forte, mas ameaçado até por flores. Sim, Joana será vencida na curva de um pétala.
A palavra beleza, levada a sério, pode desconjuntá-la e nuances, mesmo de cores ou principalmente cores, seriam, a sua perdição. Tenta ainda ignorar os sons inúteis. Mais um pouco e fica livre de pensamentos, na hora quarta do tempo morto. É aí que Joana inveja a estátua imóvel há muitos anos. Não sabe que a estátua perdeu a contagem dos anos.
Também com a nova ordem não há concessão. A realidade é o quadrado do pátio ainda cheio de moscas e serpentes ondeadas. A realidade é o perigo de ser levada para cama. A realidade é a pedra.
Joana pode dependurar a hora na parede e acrescentar realidade a isto. Foi feita certa, num tempo certo, num mundo remoto. Haverá a nova língua que a dança dos sons talvez esteja impedindo de se formar. Joana é grande e teme um laço de fita cor de rosa. Não pode ferir-se nas curvas ou deixar-se mutilar.
Está sozinha neste novo tempo. Só ela o conhece e às suas regras. Não deseja nem pode sair dele. Mas nunca poderá deitar-se que isto é cair escombrada num monte. Tenta observar as regras absolutamente certas, mas não compreendidas. Joana está só. Por exemplo: qualquer inclinação será o encontro da curva e Joana não passará deste plano para o horizontal se vergar-se, perdendo-se. Decididamente não pode deitar-se. Antevê-se amassada e, junto a outros ingredientes, aproveitada numa construção.
Será seu destino se for para a cama.
– Sentir os membros distantes, dentes opacos, pé no terceiro andar e a boca no ângulo direito da porta principal.
Os olhos, sim, estes verão as noites enquadradas nos azulejos frente à janela do banheiro.
Sim, porque na melhor das hipóteses, Joana ficará no arranha-céu, mas sem a marcha que ainda lhe é permitida. E nem haverá esperança da nova linguagem, tendo a boca fixa.
Joana não pode, não deixar-se perder.
– Joana.
Movem-se ao seu redor. Sente que alguém quer forçá-la. Joana, sem virar-se, marcha de costas dois passos para sentir-se hirta ainda antes da queda. Não sabe onde estão os olhos teimosos olhando. Sabe-se desmoronada, sem salvação, ferida de morte. Mais que isso, ruída.
Joana ruiu. Os olhos enfrentam rostos impacientes. Fica no ar uma palavra nova: Catatônica.
Joana gostaria de medi-la: Ca-ta-tô-ni-ca.
Pensa desesperada: será o princípio da nova língua, agora que estou desmoronada?
Maura Lopes Cançado (1929 – 1993) teve uma vida tumultuada.
De jovem da alta sociedade de Belo Horizonte, onde muito moça chegou a ser aviadora, acabou rejeitada pela “tradicional família mineira” por ser muito “avançada”, passando a viver uma existência precaríssima e fatal no Rio de Janeiro.
Diagnosticada com esquizofrenia, conheceu internações – de uma delas deixou um diário/romance de leitura obrigatória que é “Hospício é Deus” – e viveu em cortiços no bairro da Glória, tendo sido presa por matar uma pessoa em uma de suas crises.
Em sua fase áurea, nos anos 50/60, colaborou com o “Suplemento Dominical do Jornal do Brasil”, onde conviveu com escritores renomados.
Morreu cedo, publicou pouco.
“No quadrado de Joana” foi extraído do pequeno volume de contos “O sofredor do ver”, seu segundo livro, cujo texto tem a rara perspectiva de mostrar a doença por dentro, e não por um escritor distanciado do tema.
Quando o texto foi publicado na primeira página do Jornal do Brasil, Maura não sabia de nada.
“Ela ficou tão surpresa que no dia seguinte, nós estávamos na redação – era uma redação só para o suplemento, um espaço muito bem iluminado, o chão muito cheio de sinteco –, ela se atirou no chão pra agradecer o Reynaldo Jardim, de joelhos. Escorregou, esfolou os dois joelhos, nos deu um trabalho… Tivemos que levar Maura na farmácia pra remendar o joelho, ficou todo esfolado. Essa era a Maura.” (José Louzeiro, colega de Maura no SDJB)
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