Vi o gato brincando com algo no chão, todo animado. Fui conferir, ele costuma torturar lagartixas. Nunca deixo, liberto todas e ele me odeia por isso. Atrás do pé da mesa, identifiquei o objeto de tanta alegria: a letra F do teclado do meu notebook.
A pobre consoante, parceira de tantas frases, caíra sabe-se lá como e agora era um pedaço de plástico sem ânima, arremessado de lá pra cá e de cá pra lá na sala de jantar. Como sempre faço com as lagartixas, ralhei com o gato e acabei com a farra. Tentei reimplantá-la, estudei-lhe a engrenagem, resisti à tentação do Super Bonder. Guardei-a para, um dia, levá-la à assistência técnica. Nunca fui. E não sei mais onde a guardei. O F se foi, para sempre. È finito.
Sei de cor sua posição no teclado, desde os tempos em que datilografava os trabalhos de História na velha Olivetti. É verdade que preciso apertar mais o dedo ali, no buraco deixado por ele. Como alguém que muda o andar quando perde uma perna, e nem por isso deixa de chegar aonde precisa. F F f F f f f f. Vê? Quem precisa da assistência técnica?
No teclado banguelo D e G ficaram sem o vizinho do meio. Sabem que F não morreu, só não está mais entre nós. Como um anjo virtual, ele segue conferindo significado à cada palavra onde é requisitado. Faca, farinha, aferição, fermento, afinidade, fantasia, elfo, fé (firme, forte). Franco.
Se alguém vai usar meu notebook deficiente, é preciso avisar da letra faltante. Igual quando se orienta uma pessoa que começa a conversar com um surdo, “Ele não ouve”. A pessoa fica incomodada, hesitante, com certo medo de piorar a situação.
Tem gente que perde braço, dedo, namorado, e aprende a viver sem. Se reinventa. Eu aprendi, por exemplo, a viver sem a minha mãe. O buraco (fundo) que ela deixou nem é mais buraco. E basta que eu me lembre dela para que ela exista. (Não sei, porém, se saberia reinventar a falta de um filho.)
As letras, como as pessoas, moram no pensamento. Não nos teclados.
Assim como da minha mãe, também sinto falta do F ao meu alcance, na ponta dos dedos. Acostumei-me, porém. Reinventei-me? Não sei. Só sei que continuo escrevendo felicidade do mesmo jeito.
(*) Licença poética de “A falta que ela me faz”, livro (indispensável) de Fernando Sabino.
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